quarta-feira, abril 17, 2013

Thatcher ou a síndrome "Sócrates"

I - Por obra e graça da mediocridade que atinge muitos sectores da classe política (direita e esquerda confundidas), devidamente empolada pelas formas mais rasteiras de fazer televisão, há muito que se multiplicam os factores que, de forma primária e vingativa, tendem a fulanizar todo e qualquer debate político.

II - Assim, por exemplo, a síndrome "Sócrates": Portugal tem, por certo, infelizmente, muitos exemplos de mediocridade política na história da sua democracia; em todo o caso, mesmo alguns discursos que se querem mais elaborados ou mais construtivos tendem a demonizar a figura do ex-primeiro-ministro português de forma maniqueísta e pueril — compreende-se que haja nesses discursos uma visão hiper-negativa da acção política de José Sócrates (pourquoi pas?); resta saber se a sua culpabilização rasteira e unilateral (um pouco como os comentadores de futebol que conseguem sempre encontrar um "culpado" por cada golo...) produz qualquer ideia ou energia de pensamento que, de facto, nos ajude a lidar com o presente.

III - Aconteceu algo de semelhante (e não apenas no nosso país) face à notícia da morte de Margaret Thatcher. Escusado será dizer que, se procuramos alguém capaz de, realmente, dividir os outros, não haverá muitos modelos tão exemplares e eloquentes como Thatcher. Mas não é isso que está em causa. É, isso sim, o gratuito de discursos que, nomeando algo ou alguém como entidade diabólica, de imediato esgotam qualquer possibilidade de aceder à complexidade dos contextos históricos e de cada momento político.

IV - Sobre Thatcher, justamente, vale a pena recordar a admirável lição narrativa e filosófica de um filme britânico de 1983, intitulado The Ploughman's Lunch, escrito por Ian McEwan e realizado por Richard Eyre (entre nós estreado como A Verdade dos Factos). Sobretudo para os que, em televisão, gastam o seu e o nosso tempo com exemplos anedóticos de "coragem" e "sofrimento", vale a pena observar o que é, realmente, uma visão política que corre os riscos inerentes à consciência plural do tempo presente. Não sendo propriamente um filme filiado em qualquer forma de "tatcherismo" (longe disso!), The Ploughman's Lunch coloca em cena a própria dificuldade — jornalística, hélas! — de lidar com a aparente transparência dos factos. De tal modo que a sua intriga dramática integra alguns fascinantes momentos narrativos, registados durante a conferência anual do Partido Conservador, em Brighton, em 1982; há mesmo uma espantosa sequência [video: a partir dos 43m 30s] em que o jornalista James Penfield (Jonathan Pryce) vive um momento especialmente perturbante da sua vida afectiva, enquanto assiste ao discurso de encerramento de Thatcher — dir-se-ia que a elaboração narrativa da ficção integra o imponderável do documentário.

V - Infelizmente, entre nós (e não só), continua a prevalecer a ideologia televisiva que esvazia o gosto de pensar, favorecendo a fulanização anedótica da política e, de um modo geral, do sistema de relações sociais. Num país em que "Salazar" ganha concursos (?) de televisão e, nos últimos actos eleitorais, cerca de 3 milhões de pessoas optaram por não votar é sempre mais fácil nomear bodes expiatórios e distribuir balas de difamação. Quando a imaginação definitivamente faltar, talvez convoquem um desses juízes-comentadores do nosso desgraçado futebol para nos esclarecer se o resultado foi "justo" ou não.