terça-feira, abril 09, 2013

José Sócrates não é um anjo

PIET MONDRIAN
Macieira em Flor
1912
De que falamos quando falamos de um comentador político em televisão? Contrariando qualquer ilusão angelical, o regresso de José Sócrates ajuda-nos a relativizar a questão — este texto foi incluido num dossier do Diário de Notícias (8 Abril), comparando as intervenções de Marcelo Rebelo de Sousa e José Sócrates, com o título 'Os anjos não falam na televisão'.

Na sua intervenção de 31 de Março, na TVI, Marcelo Rebelo de Sousa tinha razão. A oposição ao Governo de Pedro Passos Coelho terá dois pólos activos, de peso necessariamente desigual: António José Seguro no Parlamento, José Sócrates na RTP1. É uma razão perversa, mesmo se, honra lhe seja feita, Marcelo cultiva a perversidade política com a sinceridade de quem não tem dúvidas morais (esta semana, en passant, afirmou mesmo que, sem o caso Casa Pia, Sócrates nunca teria sido primeiro-ministro...). Mas é uma razão sobre a qual vale a pena reflectir. Porquê? Porque Marcelo sublinhava um dado visceral da nossa pequenez mediática: para mal dos nossos pecados, o mapa tradicional da intervenção política foi sendo desagregado, emergindo o espaço televisivo como lugar nuclear, se não do poder, pelo menos da simbologia política.
A novidade de Sócrates na RTP1 é, por isso, relativa. Há muitos anos que, para o melhor e para o pior, muitas dinâmicas da vida democrática foram transferidas para a televisão (a ponto de um primeiro-ministro escolher fazer uma fundamental declaração ao país, às 18h30 de um domingo, evitando assim qualquer sobreposição a um jogo do Benfica). Em tal contexto, Sócrates possui a vantagem imensa de se apresentar esvaziado de qualquer compromisso de poder. Dirão alguns que ele apenas visa, precisamente, um regresso à arena política... Talvez. Mas em que é que isso descarta as suas palavras? Acontece que o seu discurso, inteligentemente, surgiu contundente, de arestas cortantes, sem querer fabricar a ilusão de poder estar a falar de uma plataforma neutra ou angelical. Daí o desafio imenso que a si próprio colocou: como intervir politicamente em televisão, resistindo aos métodos de fulanização simplista que passaram a comandar a tele-política?