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Uri Caine |
* GULBENKIAN: Sexta, 12 Abr. 2013, 19:00 - Grande Auditório
J.L. - A temporada de música da Fundação Gulbenkian continua a proporcionar alguns maravilhosos e heterodoxos arranjos, desafiando matrizes mais convencionais, embora sem nunca perder a sua relação criativa com o vasto universo dos clássicos. Neste caso, a música de Andreia Pinto-Correia preencheu uma primeira parte que serviu de prólogo paradoxal à presença do pianista Uri Caine no palco do Grande Auditório.
De Andreia Pinto-Correia, escutámos Elegia a Al-Mu’tamid, Alfama e Xántara — a segunda peça, com Ana Maria Pinto (soprano), resultante de uma encomenda da Fromm Music Foundation/Harvard University, em estreia europeia. Há na sua música um misto de desencantado romantismo e metódica geometria que confere a cada uma das obras uma contagiante dimensão invocativa. Alfama, em particular, integra um traço de melancolia que, tal como a própria autora refere num texto do programa, não é possível dissociar de um pudico sentimento de perda. São momentos introspectivos capazes de apelar a uma partilha ritualizada, como numa cerimónia em que cada um pode encontrar a razão oculta do seu universalismo.
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Beethoven (1820) |
O mesmo se poderá dizer do fulgurante Uri Caine, naturalmente por caminhos bem diversos. A sua apropriação das Variações Diabelli, Opus 120, de Ludwig van Beethoven, não se limita a "transferir" a obra para orquestra de câmara e piano improvisado. Que é como quem diz: não se trata apenas de propor um novo "arranjo" (o que, convenhamos, face a uma das mais lendárias peças do património pianístico, já não seria pouco) — Caine visa a produção de uma linguagem alternativa (!) que se desloca para os espaços de improvisação do jazz, preservando e, num certo sentido, exacerbando a vocação lúdica do original.
Afinal de contas, este Beethoven para o século XXI ilustra a versátil pedagogia do pianista: de Mozart a Mahler, passando por Bach (Variações Goldberg), a trajectória de Caine faz-se de muitas e surpreendentes deslocações formais que, em todo o caso, preservam sempre o gosto pelo concerto como formato conciso de partilha e fruição. Neste caso, convém não esquecer, com o sempre notável rigor da Orquestra Gulbenkian, com impecável direcção de Joana Carneiro.
N.G. - O regresso de Uri Caine ao Grande Auditório da Gulbenkian, depois de uma notável passagem na temporada passada, evocando então ecos dos últimos dias de Wagner em Veneza, traduziu-se numa daquelas raras noites que ficam na memória do que de melhor a música pode fazer: comunicar.
Acompanhado por uma formação de câmara, magistralmente dirigida por Joana Carneiro, Uri Canie caminhou por entre as Diabelli Variations de Beethoven, procurando o seu caminho, dialogando com as notas e os tempos que ali se cruzavam, promovendo estimulantes pontes entre épocas, entre o compositor e a plateia que assim o (re)drescobria e, naturalmente, e como é já marca da sua identidade, entre a música orquestral do período clássico e outras formas do nosso tempo, sob um certo protagonismo dos espaços jazzísticos (mas sem nunca acreditar numa noção de barreira ou fronteira entre a música).
N.G. - O regresso de Uri Caine ao Grande Auditório da Gulbenkian, depois de uma notável passagem na temporada passada, evocando então ecos dos últimos dias de Wagner em Veneza, traduziu-se numa daquelas raras noites que ficam na memória do que de melhor a música pode fazer: comunicar.
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Joana Carneiro |
O evidente brio instrumental na execução não foi contudo o único ser maior de uma atuação em tudo irrepreensível. A noção de liberdade e o desejo de busca que Uri Caine lançou sobre as notas de Beethoven – que a orquestra e maestrina espantosamente souberam acompanhar – sublinha uma atitude de dessacralização que importa nunca apagar de um presente que sabe que inventa o futuro quando integra e escuta o que o passado lhe deu a conhecer. Tal como nos mostrou já com pontos de partida em obras de Wagner, Bach ou Mahler, Uri Caine procura o seu caminho e o seu lugar sabendo que tem uma matéria prima em mãos que pode assim transformar. E é deste ato de reflexão presente sobre o passado que, muitas vezes, a arte dá um passo em frente. Porque, tal como o mundo da ciência há muito reconheceu, a noção de “geração espontânea” é mais uma ideia abstrata que uma realidade do mundo físico.