quinta-feira, março 21, 2013

O Papa, a televisão e... Nanni Moretti

Nanni Moretti: rodagem de HABEMUS PAPAM
A escolha do novo Papa conferiu uma inesperada, e pertinente, actualidade ao filme Habemus Papam (2011), de Nanni Moretti — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Março), com o título 'O papa de Nanni Moretti'.

Uma avalanche de imagens... quase nenhuma reflexão sobre elas. Vivemos num país em que muitos cidadãos, além de fazerem gala em proclamar que não vêem cinema português, aceitam o triunfo da lengalenga que garante que os filmes de Manoel de Oliveira são feitos de planos longuíssimos onde não se passa nada... Curiosamente, nenhum desses cidadãos (incluindo os que trabalham na área jornalística) parece ter mostrado disponibilidade para reflectir sobre o facto de, durante horas, as televisões terem reproduzido uma imagem fixa, da mais absoluta inanidade informativa, de uma chaminé do Vaticano.
A espera da divulgação do nome do novo Papa ilustrou de modo eloquente a retórica de redundâncias que, não poucas vezes, comanda o dispositivo televisivo. Na prática, parece ter pouca ou nenhuma importância o facto de existir algum elemento informativo genuinamente novo. Ignorando a arte de criar suspense do mestre Hitchcock, tal dispositivo assume-se como mera ocupação do tempo: o que conta é a repetição pueril da mensagem “continuamos à espera”, confundindo-se com a celebração de um alegado poder de imanência da própria televisão. Perversamente, a religião mais forte é essa: a televisão pode não ter nada a dizer sobre a complexidade do mundo, mas apresenta-se como veículo de um sentido transcendental que ninguém vem esclarecer ou problematizar.
Por uma feliz ironia do mercado, reapareceu nas televisões o filme Habemus Papam, de Nanni Moretti, sobre um novo Papa (Michel Piccoli) que não consegue lidar com o peso das responsabilidades inerentes ao cargo. Desde a sua passagem na edição de 2011 do Festival de Cannes, muitas vozes têm reduzido a sua subtileza intelectual e o seu saudável humor a um suposto “anti-clericalismo” de Moretti. É uma típica reacção de cobardia perante a inteligência de uma obra. De facto, Moretti nunca foi um cineasta que se possa reduzir a um discurso panfletário, desde logo ao lidar com o imaginário da esquerda italiana (reveja-se o admirável Palombella Rossa, de 1989). O seu Habemus Papam consegue mesmo relançar a questão fulcral do papado – um ser humano imbuído de uma tarefa divina – através de uma delicada atenção humanista.
O humanismo é algo com que o meio televisivo não sabe, ou não quer, lidar. Porquê? Porque a consciência humanista implica o reconhecimento de que há uma verdade (humana, justamente) que não pode ser reduzida à banal instrumentalização simbólica das pessoas ou das instituições. Aquilo que Moretti filma é a desarmante transparência com que qualquer pessoa (mesmo um Papa!) existe para além do papel institucional que desempenha ou do valor mediático que lhe é atribuído. Nesta perspectiva, não tenho dúvidas que Habemus Papam faz mais por uma visão crítica e construtiva da Igreja moderna do que a preguiça narrativa de um plano fixo sobre a chaminé do Vaticano.