domingo, fevereiro 24, 2013

Políticos num palco de ópera (1)

Foto: Ken Howard / Metropolitan Opera
Este texto é parte de um artigo que foi originalmente publicado na edição de 16 de fevereiro do suplemento Q., do Diário de Notícias, com o título: Richard Nixon e Mao Tse-Tung: Um choque de titãs num palco de ópera. 

Num aeródromo perto da capital chinesa o Air Force One, o avião presidencial norte-americano aterra junto a uma comitiva oficial liderada pelo então primeiro-ministro chinês Chou En-Lai (1). Richard Nixon (2) e a mulher Pat (3) descem as escadas, seguidos pelo conselheiro da Casa Branca (e mais tarde secretário de Estado) Henry Kissinger (4)... Cumprimentam-se e, pela televisão, o mundo assiste surpreendido àquele inesperado momento histórico. Afinal, nunca antes um presidente norte-americano em exercício visitara a China. Recordado pelas fortes convicções anticomunistas que inclusivamente lhe tinham valido a vice-presidência dos EUA nos dias de Eisenhower (5), Nixon protagonizava assim um encontro histórico numa visita oficial de sete dias que traduzia um até então não imaginado confronto diplomático entre as grandes ideologias que separavam o que eram então os mundos ocidental e oriental. Podíamos estar a falar da história recente dos EUA e de um dos feitos maiores da administração Nixon e da política externa americana dos anos 70. Mas na verdade descrevemos as cenas iniciais e o contexto em que se desenrola Nixon In China, aquela que em 1987 foi a primeira ópera de John Adams (6) e que hoje, no momento em que chega a DVD e Blu-ray a gravação de uma magnífica produção que a Metropolitan Opera, de Nova Iorque apresentou em 2011 (e que a Gulbenkian então transmitiu como parte do programa Met Live in HD em fevereiro desse ano), é um dos raros exemplos de óperas da segunda metade do século XX que entraram já no restrito grupo de obras que fazem o cânone das produções mais vezes apresentadas em teatros de ópera. Afinal, quantas outras óperas do nosso tempo contam já com três gravações distintas (duas em disco, e esta nova em DVD e Blu-ray), geraram a edição de livros e alcançaram o patamar de reconhecimento quase unânime que hoje faz de Nixon In China uma referência?

No inverno de 1972, um jovem John Adams vira, pela televisão, o Air Force One a aterrar em Pequim, as figuras de Nixon, a sua mulher, Pat, e Kissinger a descer as escadas e ser recebidos por Chou En-lai. No seu livro de memórias Hallelujah Junction, o compositor descreve este momento como sendo um gesto ousado, “esta ideia de entrar pelo sombrio coração comunista e oferecer um bom aperto de mão rotariano aos nativos, aqueles mesmos chineses que até então, e com tínhamos sido várias vezes avisados, representavam o oposto das noções de democracia representativa” (7). Adams guarda também as imagens do dia seguinte, do encontro entre Nixon e Mao (8), cujo aperto de mão descreveu como sendo ainda mais devastador que a aterragem de um homem na Lua. Lembra a figura de um frágil octogenário que mal era capaz de se levantar da sua cadeira durante o tempo necessário para a foto ao lado do presidente que o visitava.

A figura de Richard Nixon, de resto, habita várias das memórias de infância e juventude de John Adams. Era o seu “papão”, como ele mesmo o caracteriza em Hallelujah Junction. Liga-o a memórias dos anos 50, aos “calafrios da Guerra Fria”, à propaganda anticomunista e todo um clima conservador que recorda daqueles tempos. Na sua autobiografia conta que a sua mãe fora sempre voluntária nas campanhas do partido democrático no New Hampshire, onde viviam, o que, desde cedo, projetara em si um certo fascínio pela política. Recordando em concreto as presidenciais de 1960 (9), John Adams confessa que lhe “era difícil compreender a capacidade de Nixon captar quaisquer votos que fossem contra o carismático e bem-parecido John F. Kennedy (10)”. De resto, acrescenta nas suas memórias, o eventual potencial de atração de Nixon resultaria mais do facto de não ser um democrata liberal, não ser filho de uma família rica, não ser católico, de não falar com o sotaque do Massachussets.

Tinha então 13 anos e, desses dias, recorda--se de ter visto na televisão o famoso debate entre Nixon e Kennedy que terminou com clara vitória ao segundo. Lembra como a televisão tratou desfavoravelmente o candidato republicano, revelando o suor na testa de Nixon, a boca seca e o piscar de olhos (11). Kennedy não só venceu esse debate como a eleição de 1960, tomando posse em janeiro de 1961. Seria assassinado em Dallas em 1963, sucedendo-lhe o seu “vice”, Lyndon Johnson, que iria a votos em 1964, derrotando então o candidato republicano Barry Goldwater. Em Hallelujah Junction, Adams conta que, quando terminou a sua formação, “o teimoso e tenaz, mesquinho e maquiavélico Nixon tinha regressado e era agora Presidente”, acrescentando que o jovem compositor era então um espécimen do modelo do jovem punk contra quem Nixon falava quando se referira “à sua imaginada maioria silenciosa” ao comentar e criticar “a falta de patriotismo do movimento pacifista”. No seu livro diz ainda que “face à abjeta opção [dos mais jovens] pela música barulhenta, sexo promíscuo e ingenuidade política, Nixon contava antes com os seus americanos médios, sofredores e silenciosos: os modestos, os monogâmicos, os tímidos e os respeitadores. Eram os empresários de pequenas cidades, com as suas mulheres obedientes e famílias de dois filhos e meio. A infância quaker (12) de Nixon, difícil e pobre, fazia uma história pessoal que devia ser mitificada e inspiradora, sobretudo no contraste com o dinheiro, o poder e os privilégios de Kennedy” (13). Adams critica mais ainda as mas opções de Nixon ao escolher as figuras que mais tarde estiveram nos bastidores do caso Watergate (14). E aponta o dedo às suas ações no Vietname – que comenta referindo concretamente bombardeamentos e a “ofensiva diplomática” – que conduziram “ao humilhante colapso da presença americana” na região e “a uma década de recriminação” (15).

(continua)