domingo, fevereiro 10, 2013

David Fincher em televisão

Como se prova, a relação cinema/televisão não tem de ficar submetida à mediocridade da reality TV e suas monstruosidades. Dos EUA, chega-nos mais um exemplo modelar de invenção e reinvenção, com chancela de David Fincher — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Fevereiro), com o título 'Cinema & televisão por David Fincher'.

Provavelmente, um dos grandes acontecimentos cinematográficos do ano de 2013 está... na televisão! Ou então, se quisermos intensificar o paradoxo que assim emerge, diremos que o melhor da actual televisão é... grande cinema! O que justifica tais afirmações dá pelo nome de House of Cards, é uma série de televisão a cujo desenvolvimento está ligado um nome incontornável do moderno cinema americano, David Fincher, e chegou na passada sexta-feira a um canal português do cabo (TV Séries), apenas um dia depois do seu lançamento nos EUA.
Aliás, importa dizer que o lançamento americano se distingue por uma singularidade que, em termos de produção e difusão, poderá vir a revelar-se profética. Encomendada e difundida pela rede de aluguer Netflix, a primeira temporada da série ficou instantaneamente disponível para os respectivos assinantes. Entre nós, na madrugada de sexta para sábado [1/2 Fev.], pudemos ver os dois primeiros episódios, ambos dirigidos pelo próprio Fincher.
House of Cards utiliza duas referências como ponto de partida: a primeira, o romance homónimo de Michael Dobbs; a segunda, a série britânica a que deu origem, lançada em 1990, tendo por pano de fundo os jogos de bastidores da cena política nos tempos finais da governação de Margaret Thatcher. Agora, a acção situa-se em Washington, a partir do início de 2013, com um Presidente eleito (fictício) à beira de tomar posse; a personagem central, Francis Underwood, é um representante democrata no Congresso, interpretado por Kevin Spacey, que decide montar uma elaborada e perversa estratégia de vingança a partir do momento em que o novo Presidente, renegando uma promessa política, não o convida para a Direcção do Departamento de Estado (cargo equivalente ao de primeiro-ministro, actualmente ocupado por John Kerry, senador do Massachusetts).
Há uma dimensão vertiginosa no modo como Fincher [foto] lança as muitas histórias cruzadas de House of Cards. E não apenas porque a acção envolve uma vasta galeria de personagens, ligadas por elementos que podem ter tanto de compromisso institucional como de dependência psicológica. Através de tudo isso, Fincher mostra como muitos gestos da política contemporânea passam menos pela divulgação de medidas (políticas...) e mais pela administração (mediática) de medidas que, eventualmente, nunca chegarão a ser tomadas.
Nesta perspectiva, a referência que se actualiza tem as suas raízes, sintomaticamente, no património de Hollywood: encontramos aqui uma visão da ambiguidade (da) política que nos remete para alguns grandes thrillers dos anos 70, assinados por cineastas como Alan J. Pakula (A Última Testemunha) ou Sydney Pollack (Os Três Dias do Condor). Fincher é um dos mais directos, e também mais talentosos, herdeiros dessa tradição política que se confunde com uma estética cinematográfica.