Ironia teatral suplementar para um grande acontecimento de cinema: no décor de Django Libertado, a cadeira de Quentin Tarantino surge também marcada pela tinta vermelha que emerge do tiroteio a ser encenado — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Janeiro).
Quentin Tarantino será o último a querer rotular Django Libertado como um filme típico da “era Obama”. Em todo o caso, não deixa de ser interessante constatar que, durante o primeiro mandato do primeiro Presidente negro dos EUA, se assistiu a uma deslocação temática no interior de Hollywood, comandada pela necessidade de revisitar alguns traumas da história nacional, desembocando, agora, na eclosão de dois filmes admiráveis (bem diferentes, entenda-se) sobre a escravatura e a Guerra Civil: Lincoln, de Steven Spielberg (estreia dia 31) e Django Libertado.
Escusado será dizer que tais filmes não decorrem dos discursos de Barack Obama. Enraízam-se, isso sim, numa profunda urgência simbólica, aliás transversal a republicanos e democratas: veja-se, por exemplo, como John McCain sentiu necessidade de se demarcar do tratamento da captura de Osama Bin Laden no filme de Kathryn Bigelow, Zero Dark Thirty (a meu ver, outro prodigioso objecto de cinema). O que está em jogo é a ansiedade de uma América insatisfeita com a lógica de algumas das suas memórias colectivas. E essa insatisfação é também (arriscar-me-ia a dizer: é mesmo sobretudo) de natureza cinematográfica.
Django Libertado consegue a proeza estética e política de virar o western clássico do avesso, inventando um herói cuja pele já não é branca, ao mesmo tempo que reafirma a liberdade conceptual do próprio gesto cinematográfico. Para Tarantino, como para muitos artistas contemporâneos, não há fronteira entre a convocação do passado e a fruição presente do espectáculo. O seu cinema vive tanto da consciência feérica do sangue como do sofisticado contraponto da palavra falada. Shakespeare não fez outra coisa, mas também não creio que Tarantino concorde com a sua evocação... Entre as virtudes dos grandes cineastas, a simpatia mediática não é obrigatória.