Parece Liberace, mas é Michael Douglas a interpretar... Liberace [ver foto mais pequena]. A imagem pertence a Behind the Candelabra, filme de Steven Soderbergh que, depois de sucessivas recusas dos estúdios de cinema, se transformou numa produção da HBO — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'O filme gay de Steven Soderbergh'.
Notícia da última semana: Behind the Candelabra, o projecto biográfico de Steven Soderbergh sobre o pianista e cantor Liberace (1919-1987), adaptado do livro do seu companheiro Scott Thorson (n. 1958), não terá apoio financeiro de qualquer estúdio de Hollywood. Segundo o próprio Soderbergh (ver, por exemplo, a edição de 7 de Janeiro de The Guardian), a produção tentou todas as hipóteses mas, apesar do valor baixíssimo do orçamento (5 milhões de dólares, menos que muitos filmes independentes), os estúdios recusaram sempre, evocando a dificuldade que representaria promover um filme “demasiado gay”... Entretanto, Behind the Candelabra está a ser feito para televisão, com chancela da HBO, e deverá ser emitido nos EUA no mês de Fevereiro.
Reparem: não pretendo, nem de longe nem de perto, alimentar o discurso anti-Hollywood, automático e ressentido, que sempre andou por aí. Primeiro, porque considero o cinema americano como um dos mais plurais e fascinantes de todo o planeta; segundo, porque a sua diversidade passa (e passa de forma decisiva) pelos estúdios de Hollywood. O que está em causa é uma forma de encarar a abordagem da homossexualidade a partir de uma bizarra métrica temática. Assim, para os pontos de vista que rejeitaram o filme de Soderbergh, a representação de personagens ou relações homossexuais deve obedecer a uma espécie de “razoabilidade” narrativa: há os filmes gay, mas há também os filmes “demasiado” gay...
Prevalece o mesmo primarismo que, ciclicamente, se renova a propósito dos filmes “violentos”. Podemos, aliás, observar tal fenómeno em torno do notável Django Libertado, de Quentin Tarantino (estreia: 24 Janeiro): para algumas vozes americanas, há “demasiada violência” na representação do tema envolvido (a escravatura na América de finais do século XIX). Entre nós, por exemplo, valeria a pena discutir o facto de a representação das relações heterossexuais no espaço das telenovelas ser todos os dias demasiado primária, demasiado moralista, demasiado estúpida... Mas que, algures, haja um homossexual em cena, eis o que atrai logo os polícias dos bons costumes narrativos: não se estará a ir longe demais, perguntam eles?
Não simplifiquemos ainda mais. E, sobretudo, não desliguemos a questão de uma postura eminentemente cinematográfica. Na verdade, Soderbergh continua a ser um admirável cineasta “não-alinhado”, trabalhando com o mesmo talento e a mesma serenidade no coração de Hollywood (veja-se a brilhante série de filmes iniciada, em 2001, com Ocean’s Eleven) ou nos espaços mais singulares dos independentes. Foi daí, aliás, que surgiram os seus dois títulos lançados em 2012: Haywire, um notável policial “feminista”, e Magic Mike, retrato desconcertante dos bastidores dos espectáculos masculinos de striptease. Sintomaticamente, nenhum deles está na corrida para os Oscars. São, por certo, demasiado... qualquer coisa.