Foto: FCG/Márcia Lessa |
Foi certamente um dos momentos altos da temporada 2012/13 da Gulbenkian, a estreia nacional de Émilie, a mais recente ópera de Kaija Saariaho, contando inclusivamente com a presença da compositora na sala (afinal a obra é co-encomenda da Gulbenkian com a Ópera de Lyon, onde teve estreia mundial e o Barbican Centre). A ideia de um monodrama para soprano solo foi o ponto de partida, a leitura recente de um livro de Elisabeth Badinter sobre Émilie de Châtelet (Gabrielle Émilie Le Tonnelier de Breteuil, marquesa de Châtelet-Laumont, 1706-1749) focando depois primeiros sinais de um caminho, que a compositora foi trabalhando ao longo de meses, em conversas com Amin Maalouf (que assinou o libreto), em 2008 começando a composição da partitura naquilo que a própria Kaija Saariaho descreve como “um longo inverno passado com Émilie”.
Uma das maiores entre as figuras pioneiras da ciência no feminino, Émilie de Châtelet permite-nos revisitar os ideais do iluminismo (com os quais o seu pensamento emergiu e ajudou a fixar as marcas de um tempo). Porém, mais que apenas fazer de Émilie uma ópera-retrato das ideias de uma mulher que foi física, matemática, escritora, Saariaho promove um quadro reflexivo que encerra numa sucessão de nove momentos dentro de um instante narrativo: a espera de um veredicto clínico. Espera que desencadeia memórias e reflexões.
A música serve assim de plano discreto sobre o qual a voz enceta uma viagem interior. Contudo, e apesar da excelência vocal e dramática da soprano Barbara Hannigan, o que mais impressiona na nova ópera de Saariaho é mesmo o trabalho delicado, mas feito de subtilezas que não se diluem no fundo orquestral, que a música revela quadro após quadro.
Numa produção que – um pouco como a que em tempo ali vimos de A Flowering Tree, de John Adams – soube conciliar uma ideia de encenação com a necessidade de colocar músicos em cena (num palco mais “habituado” a versões de concerto), Émilie foi também aí uma experiência feliz, a convincente visão de Vasco Araújo e André Teodósio (que contou com bailarinos da Companhia Nacional de Bailado e da Escola Superior de Dança) criando uma possível materialização física dos estados de alma, ideias e memórias pelas quais passam os nove momentos que a protagonista vive em palco, as breves “aparições” de T-shirts dos Justice ou Sepultura sendo, juntamente com a presença instrumental de um cravo, marcas possíveis de pontes que se sugerem entre o tempo da figura que se evoca e o do presente em que a obra nasce e ali se mostra, agora, corpo vivo.