A situação da Cinemateca Portuguesa, passando pela urgência da sua actualização técnica, é uma pedra de toque de qualquer política cultural — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Dezembro), com o título 'Para (não) acabar com a Cinemateca'.
Uma mão cheia de títulos clássicos vai passar, em Janeiro, na Cinemateca Portuguesa. Seven Chances (1925), de Buster Keaton, Abraham Lincoln (1930), de David W. Griffith, Le Sang d’un Poète (1932), de Jean Cocteau, Black Narcissus (1947), de Michael Powell e Emeric Pressburger, ou Charulata (1964), de Satyajit Ray, são apenas algumas das preciosidades que será possível ver ou rever, a par de uma colecção imensa de títulos, documentários e ficções, da produção portuguesa. O mote do mês é “Foco no arquivo” e excede a apresentação de filmes: projecções em vídeo, colóquios, uma conferência, uma exposição e visitas guiadas ao Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM) pretendem dar conta da riqueza patrimonial da Cinemateca e também dos desafios que o seu futuro envolve.
Entre esses desafios incluem-se, necessariamente, os efeitos das correntes medidas de austeridade e a urgência em equipar as duas salas da Cinemateca com os aparelhos de projecção digital que a revolução tecnológica deste século impõe, para além do 35 mm, como opção incontornável. Na prática, a instituição tem sido confrontada com algumas absurdas peripécias burocráticas (a ponto de ter sido forçada a anular algumas sessões por não obter a tempo autorizações para trabalhos de legendagem que já estavam cabimentados) ou com dramáticas barreiras técnicas (faltando-lhe, por exemplo, a capacidade de projectar filmes em suporte DCP, hoje em dia o formato corrente da maioria dos filmes em circulação).
Para nossa maior desgraça, vivemos sob o jugo de uma cultura televisiva que tende a menosprezar qualquer relação sistemática com as memórias e o património artístico. Uma coisa é o lugar-comum que nos faz admirar o passado do cinema como uma colecção de coisas pitorescas, anedóticas, na melhor das hipóteses com a silhueta de Charlot aos pulinhos e a fugir da polícia... Outra, bem diferente, é uma noção vital para qualquer política cultural que se demarque da mais agressiva cegueira mediática. A saber: a criação de condições para a dignidade e a eficácia do labor de instituições como a Cinemateca não é um luxo, mas um princípio nuclear de um entendimento moderno e responsável de administração de todas as formas, objectos e lugares que a nossa memória colectiva possa envolver.
O anúncio, em Setembro, do Plano Nacional de Cinema (“um programa de literacia para o cinema junto do público escolar”) foi um sinal positivo de dois princípios rudimentares: primeiro, não se pode esperar que um país alagado de telenovelas há mais de trinta anos produza automaticamente espectadores de cinema informados e disponíveis; segundo, o conhecimento cinematográfico pode, e deve, começar na escola. Neste contexto, o futuro da Cinemateca envolve algo de cristalino e contundente: está em jogo o reforço do seu exemplar trabalho ou, pelo contrário, o seu esvaziamento institucional.