La Cina È Vicina. Que é como quem diz: "A China está próxima". Era o título de um magnífico filme do italiano Marco Bellocchio, lançado em 1967, reflectindo uma crise de valores (europeus) que projectava na grande nação asiática os desejos políticos e as ânsias utópicas de toda uma geração. Agora, podemos voltar a dizer o mesmo, mas o sentido da afirmação mudou de forma substancial: aquilo que está em jogo é o desequilíbrio, no mínimo simbólico, entre um mundo (europeu e não só) bloqueado no seu sistema de valores e um universo distante, mas que todos os dias se exprime nos nossos espaços — materiais e virtuais — pela sua pluralidade criativa e também pela energia económica que o sustenta. Neste contexto, recentemente, soubemos também que o mercado chinês do cinema se transformou no maior mercado estrangeiro, quer dizer, para além dos EUA: os americanos são, inevitavelmente, os primeiros a dar a devida atenção a tal dinâmica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Janeiro), com o título 'Redescobrindo a China do cinema'.
* * * * *
Um dos efeitos correntes da sociedade da (des)informação em que vivemos consiste em fazer-nos crer que qualquer sinal parcial seja do que for, da política ao mais anedótico fait divers, nos dá uma visão instantânea do “todo” a que pertence. Já vimos noticiários televisivos dizendo-nos que foram “ouvir a opinião dos portugueses”, para logo a seguir nos apresentarem conversas de 10 segundos com quatro simpáticos velhotes no Rossio... Não admira, por isso, que se tenha generalizado a ideia de que as “lojas dos chineses” (acolhedoras e, por vezes, muito úteis) são o retrato automático do mais populoso país do mundo e de todos os seus 1,3 mil milhões de seres humanos... A ignorância, como bem sabemos, é sempre fácil e atrevida.
Vale a pena não nos alhearmos da singularidade de cada facto, ideia ou estatística. Esta, por exemplo: de acordo com dados oficiais recentemente divulgados, em 2012, as receitas das salas de cinema chinesas atingiram o valor de 2,6 mil milhões de dólares (cerca de 2 mil milhões de euros). Como sublinha o jornal Variety, a “bíblia” de Hollywood, isto significa que, para além dos EUA, a China se transformou no maior mercado internacional do cinema, ultrapassando o Japão.
A surpresa é relativa. Desde logo, porque um dos mais espectaculares índices de crescimento económico na China se pode encontrar no seu parque de exibição cinematográfica: é certo que as suas actuais 13 mil salas representam um valor ainda relativamente escasso para o número global de habitantes; seja como for, tal valor significa que passou a haver dez vezes mais salas do que em 2002! Além do mais, convém não esquecer que a China é um dos países asiáticos (a par da Índia) que se tem empenhado em criar laços cada vez mais consistentes e diversificados com a produção cinematográfica do Ocidente, em particular dos EUA.
Um dos melhores frescos históricos de 2012 foi mesmo um filme chinês, de Zhang Yimou, protagonizado por Christian Bale, o actor inglês que, através da personagem de Batman, se transformou numa estrela do cinema americano: As Flores da Guerra conta a odisseia de um agente funerário que, em 1937, apanhado na vertigem da invasão do território chinês pelas tropas japonesas, se vê compelido a disfarçar-se de padre, assumindo a gestão de um convento onde se refugia um grupo de prostitutas...
Era um filme vibrante, de emoções à flor da pele, que esteve longe de ter a mesma cobertura mediática dos maiores disparates de Hollywood, promovidos pelo exotismo dos seus “efeitos especiais” (a ponto de, muitas vezes, conhecermos mal a fascinante diversidade do cinema made in USA). Acima de tudo, As Flores da Guerra era uma eloquente ilustração de um fenómeno a que todos, todos os dias, reconhecemos crescente importância: o cruzamento cada vez mais complexo e sofisticado de culturas e economias, criadores e narrativas.