Nove anos depois estamos de regresso à Terra Média, levando o cinema a novo encontro com a (genial) fantasia de JRR Tolkien. Porém, onde a magnífica trilogia O Senhor dos Anéis conseguira materializar os universos dos vários povos da Terra Média (suas línguas, história, arquitetura e comportamentos) em favor de uma história que reencena a antiga luta entre o bem e o mal (deixando até de fora personagens, como Tom Bombadil, em favor de uma necessidade de compor uma visão cinematográfica necessariamente menos exaustiva que as centenas de páginas dos três livros), O Hobbit procura esticar a três filmes o pouco que a pequena novela de 1937 nos relatava. E promove uma extensão tão longa que é um pouco como aquela coisa do pasteleiro que quer fazer mais pastéis que os que pode com a massa que tem e que, de tanto a tender e esticar, acaba por nela rasgar buracos...
Convenhamos que não eram precisos 170 minutos de filme para relatar um terço de tão curto volume, a condensação que o mesmo Peter Jackson tão bem usara em O Senhor dos Anéis cedendo agora o lugar a uma mais evidente presença da caixa registadora.
Mas a duração não é o mal maior de O Hobbit – Uma Viagem Inesperada. Em primeiro lugar, o tom mais fantasioso e bem humorado de O Hobbit (que Tolkien escreveu a pensar em leituras para os seus filhos), que vemos por exemplo na sequência com os trolls que discutem formas de gastronomia na hora de cozinhar anões ou na figura do feiticeiro castanho, nem sempre coabita bem com a face mais assombrada tão característica de O Senhor dos Anéis. E um certo tom esquizofrénico instala-se num filme de duplas personalidades que na verdade não se fundem nunca numa só. Afinal onde ficamos?...
Depois há toda aquela vontade de vincar a “verdade” do franchise. Da ideia de 'marca' (como branding, entenda-se). Convocando personagens (e atores) de O Senhor dos Anéis, como que a mostrar, com regularidade, que estamos “mesmo” no mesmo universo. As presenças de uma Cate Blanchett ou Christopher Lee (que retomam em breves instantes as personagens de Galadriel e Sauruman, ausentes n’O Hobbit) são narrativamente inconsequentes na ação desta nova trilogia. Bastava a sequência com Ian Holm e Elijah Wood (Bilbo velho e Frodo), que recupera o mesmo dia em que começa a ação de A Irmandade do Anel (2001) e estabelece de forma engenhosa a ponte entre os dois tempos – juntamente, claro, com a figuras de Gandalf e Gollum, novamente entregues a Ian McKelllen e Andy Serkis – para sublinhar o que já todos sabemos. Sim, é o mesmo universo de O Senhor dos Anéis. Sim, a mesma Terra Média. Sim, as mesmas personagens. Sim, os mesmos atores e realizador e grande parte da equipa técnica. Mas não... Acharam que tinham de ser como aquele pequeno restaurante cujo gerente assinou um contrato com uma grande rede e quer que o franchise não falhe nas receitas, pelo que a batata tem de saber à batata de referência da marca, a salada tem de ter os mesmos temperos e os bifes os mesmos molhos. Tudo igualzinho, a marca sobrepondo-se à história. Não era preciso.
E há ainda o festim digital, que amplifica o tom de vídeo jogo das soluções narrativas encontradas em algumas sequências – sobretudo nas cavernas dos gnomos, que mais parece coisa de somar pontos em função de quantos mauzões lançamos pelo abismo abaixo – que retira o tom de "verdade" que lembramos das colossais batalhas que vimos em As Duas Torres e O Regresso do Rei.
Com outra contenção e sem ambição do sapo que queria ser boi (e, de tanto encher a boca de ar, rebentou), O Hobbit em versão trilogia começa da pior forma. Desencanto para quem em Peter Jackson tinha reconhecido o raro talento de levar ao cinema – e com tão bons resultados – o romance triplo de Tolkien que tanta descendência gerou já, desde a literatura de fantasia ao cinema de ficção científica. O Hobbit, na versão escrita, é um primor de ideias. Merecia melhor vida no cinema...