domingo, novembro 25, 2012

Porque somos o que escutámos

O compositor Thomas Adès, que aqui se senta ao piano, partilha com o violoncelista Steven Isserlis o protagonismo deste disco, onde interpretam obras de Liszt, Janacék, Fauré, Kurtág e do próprio Adès.

Íamos em 1668 quando Francesco Redi provou que a abiogénse, ou seja, a criação de vida a partir de matéria não viva, afinal não existia. A ideia de algo que surge por “geração espontânea” pode ter sido importante espaço de reflexão noutros tempos, mas na prática a coisa era diferente. E na sua experiência, mostrou como as larvas de moscas não surgiram na carne que tinha em recipientes tapados, porque a tela que os cobria impedia que as moscas lá colocassem os ovos... Ora, se taparmos os ouvidos de um compositor a coisa será semelhante. É claro que não podemos aplicar a mesma lógica da experiência em sentido lato. Mas o que vem ao caso é que a ideia de “geração espontânea” na música, como nas artes em geral, é coisa que, salvo exceções (admito que as haja, que isto de fazer generalizações sem aplicar o método científico dá asneira) não deverá existir. Toda a música (ou quase toda, já que não inventariámos a coisa e não podemos ser assim tão definitivos) provém de uma série de relações que se estabelecem entre o compositor, o seu tempo e lugar, a sua vivência, os materiais (humanos e sonoros) à sua disposição e a forma como ouviu, integrou e assimilou o que de outros escutou. A evolução, como na biologia, tem saltos, que podem ser explicados por mudanças sociais, tecnológicas ou eminentemente estéticas. Mas, quase sempre, o que o compositor escuta acaba por definir o que vai ser, seja por uma lógica de acção por oposição, continuidade ou transformação. O que este novo disco nos mostra, na forma de um sublime recital para violoncelo e piano, é como uma nova peça de Thomas Adès para estes dois instrumentos na verdade não é senão o resultado de uma vivência (e naturais reflexões) do compositor face a obras de outros autores. Assim, o alinhamento – que sugere precisamente essa lógica de recital – passa por peças de Liszt (1811-1886), Janacék (1854-1928), Fauré (1845-1924) e Kurtág (n. 1926), antes de chegar a Lieux Retrouvés, um encontro entre o cromatismo expressivo do violoncelo e a presença também marcante do piano, segundo Thomas Adès (n. 1971). Composta para o violoncelista Steven Irrselis, que partilha precisamente com Adès (piano) este alinhamento, esta obra de 2009 nasce de um relacionamento de Adès com os demais compositores que aqui revisita, a eles juntando-se ainda ecos de uma vivência num presente onde se cruzam ainda espaços da música popular e de uma presença do minimalismo. Porque, ao contrário da carne da experiência de Redi, Adès não vive com telas a tapar-lhe os ouvidos.