Para além (ou antes...) da sofisticação técnica, a animação dos estúdios Pixar vai cuidando de uma elaborada relação com a tradição da fábula: Brave é mais um bom exemplo disso mesmo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Agosto), com o título de 'O gosto primitivo da fábula'.
A preceder a longa-metragem Brave, de Mark Andrews e Brenda Chapman, a Pixar apresenta mais uma das suas deliciosas curtas-metragens: chama-se La Luna, foi escrita e dirigida por Enrico Casarosa, e propõe uma pequena parábola familiar (completamente lunar...) sobre a integração no mundo do trabalho. Além do mais, a sua inclusão no programa de Brave arrasta uma evocação nostálgica das clássicas formas de consumo cinematográfico (complemento + filme), sintomática da dimensão mais primitiva das histórias da Pixar.
Aliás, o primitivismo da história de Merida, a princesa de Brave, está muito longe de se esgotar na exuberância do cenário escocês de há uns bons mil anos. Pode mesmo dizer-se que o filme aposta no registo mais clássico e despojado da fábula, uma vez que a aventura de Merida não se confunde com nenhuma prova que ela tenha de enfrentar perante alguma circunstância exterior. Não se trata, de facto, nem de combater uma qualquer ameaça proveniente desse exterior, nem de partir para uma aventura que a possa afastar das suas origens. Nada disso: Merida é uma jovem que discute os fundamentos da própria tradição (escolher um noivo) que o reino espera que ela cumpra.
Na sua eficácia dramática e na força contagiante das suas emoções, mesmo não sendo um dos grandes filmes da Pixar, Brave consegue a proeza de mostrar que a sofisticada evolução dos desenhos animados está muito longe de se esgotar na mera gestão de um determinado aparato tecnológico. Constitui mesmo uma boa lição para alguns espectáculos de Verão que confundem o cinema com a banal acumulação de “efeitos especiais”. Afinal de contas, o que distingue uma princesa é o seu comportamento e a sua ousadia, não os programas computador que ajudaram a desenhá-la.