Se a obra de Claude Debussy foi fundamental para definir os caminhos que a música tomaria no século XX, porque não evocar semelhante visão (e espírito visionário) numa altura em que os calendários colocavam a pouca distância a chegada do século XXI? Não que os Art Of Noise se imaginassem, como Debussy o foi, capazes de encontrar na sua obra motivos igualmente marcantes para sugerir a passagem do século (nomes como os Radiohead, Björk ou Sigur Rós pareciam, na altura, mais capazes de transformar semelhante sonho em realidade), mas porque citando Debussy lembravam como há mais que uma mudança de datas a ter em conta quando de uma época passamos para a seguinte.
É a voz do ator John Hurt quem nos conduz nesta visita a memórias de Claude Debussy que, em 1999 o quarteto britânico registou no álbum a que chamou muito simplesmente The Seduction of Claude Debussy. Conta-nos o narrador, logo nos primeiros instantes, que “quando Debussy morreu, a 25 de março de 1918, Paris estava a ser bombardeada pelos alemães. E estava a chover”... Ao longo do disco vamos encontrando, sem uma lógica narrativa necessariamente cronológica, ecos de memórias e factos da vida e marcas da personalidade do compositor. Mas, mais que um biopic sob a forma de uma mão cheia de composições feitas de eletrónicas, cenografias meticulosamente elaboradas e palavras, The Seduction of Claude Debussy é, na essência, uma metáfora sobre a passagem de século, recordando como, cem anos antes, também os sonhos e as dúvidas se acotovelavam a caminho de mais um 31 de dezembro. Mais uma ideia de percurso temático que um recriar da noção do modelo conceptual (que teve maior expressão em várias obras pop/rock nos anos 70) o álbum dos The Art of Noise recupera o sentido agit prop que caracterizara as primeiras afirmações da alma da banda e da própria editora à qual nascia associada, jogando com palavras e frases lapidares, todavia aqui diluídas no texto que escutamos na voz do narrador. A música cita elementos de obras de Debussy e do próprio passado dos Art of Noise, ao mesmo tempo que desenha, quadro após quadro, uma visão que passa pelo drum'n'bass, o downtempo, as estéticas ambient e mesmo a ecos da música pop. A voz da cantora lírica Sally Bradshaw partilha os momentos de protagonismo vocal com a postura mais pop de Donna Lewis ou o rap de Rakim (que faz rimas de palavras de Baudelaire).
Esta não era a primeira vez que os universos da pop e da música clássica dialogavam com semelhante profundidade (não falamos, portanto, das mais banais versões orquestrais de canções pop/rock, tantas que as houve ao longo da história e sem quaisquer expressões de novas ideias em qualquer dos dois universos). E basta recordar peças históricas como o foram as abordagens eletrónicas a composições de nomes como Bach, Haendel ou Beethoven por Wendy Carlos em finais dos anos 60 - que podemos ouvir em Switched on Bach (1968) ou The Well-Tempered Synthesiser (1969) - , o álbum que Frank Zappa gravou em 1979 com o compositor e maestro Pierre Boulez, os diálogos de heranças do canto lírico com a pop de um Klaus Nomi, a visão pop (mais caricata que consequente) de Malcolm McLaren sobre árias de óperas célebres no álbum Fans (1985), as colaborações de Phlilip Glass com nomes como os de Paul Simon, David Byrne ou Suzanne Vega em Songs From Liquid Days (1986), o entusiasmo com que uma série de músicos de correntes eletrónicas responderam ao apelo para participarem no álbum de reconstruções remisturadas de obras de Steve Reich e a nova composição que este estreará brevemente inspirada pela música dos Radiohead ou a presença de fantasmas da música dos tempos da corte de Luis XIV no álbum The Versailles Sessions de Murcof (2008) para repararmos que a aventura dos The Art of Noise estava longe de ser coisa invulgar ou mesmo inédita. A música de Claude Debussy já havia sido inclusivamente visitada pela pop quando, no alinhamento do álbum de 1991 Tenement Symphony, o cantor britânico Marc Almond integra uma breve citação às Trois Chansons de Bilitis (um ciclo de canções que Debussy compôs em 1897 a partir de três dos poemas eróticos publicados três anos antes por Pierre Louys).
Uma das mais inventivas forças da pop britânica dos anos 80, os Art Of Noise (cujo nome alude a um histórico ensaio do futurista Luigi Russolo) tinham cativado originalmente atenções através de uma música feita de colagens, ideias, palavras de ordem e recontextualização de fragmentos, e um mais evidente interesse pela construção de temas instrumentais e a utilização da voz fora das fronteiras tradicionais do canto, com obra-prima registada no visionário Who's Afraid of The Art of Noise. Lançado em 1984, o álbum afirmava-se ainda como um rosto da voz revolucionária que então ganhava forma através da ZTT Records (a mesma editora que por essa altura ganhava fama e somava êxitos com os Frankie Goes To Hollywood). Depois de uma etapa de mais evidentes flirts com os formatos da canção pop – durante o qual geraram temas de sucesso maior como Peter Gunn, Paranoimia ou uma versão de Kiss, de Prince, com a colaboração vocal de Tom Jones – e de uma outra fase, mais discreta, em inícios dos anos 90, em território ambient, os Art of Noise tinham feito silêncio. Que voltaram a interromper apenas em 1999 quando – numa nova formação, juntando os esforços de Anne Dudley, Trevor Horn, Paul Morley e Lol Creme – apresentaram o disco que evocava a figura de Debussy como amante de gatos, narcisista, estrela do seu tempo e inventor do século XX. De então para cá a obra do grupo juntou mais títulos à sua discografia, todos eles contudo juntando ora peças de arquivo ou gravações históricas em antologias claramente destinadas aos aficionados da sua muito peculiar forma de entender uma certa arte de fazer pop.
Debussy |