A palavra Pixar já envolve mais do que um dos maiores estúdios de animação: confunde-se com um estilo: o filme Brave aí está para o confirmar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Agosto), com o título 'Revisitando a Escócia primitiva através do desenho animado'.
Estreado a 22 de Junho nos EUA (15 de Agosto em Portugal), o filme de animação Brave/Indomável, produzido pela Pixar, termina com uma legenda que evoca Steve Jobs (1955-2011). Mais do que uma homenagem àquele que foi um dos fundadores da Pixar, trata-se do reconhecimento de um legado que transformou de modo radical a história da animação cinematográfica.
Brave representa o consumar de uma lógica criativa totalmente apoiada nos desenhos digitais, consagrada desde Toy Story (1995), a primeira longa-metragem da Pixar. De então para cá, o estúdio gerou um total de treze títulos de longa duração, incluindo fenómenos planetários como À Procura de Nemo (2003), Ratatouille (2007) e WALL-E (2008). E se é verdade que, em 2006, os estúdios Disney compraram a Pixar, por um valor calculado em 7,4 mil milhões de dólares (cerca de 6 mil milhões de euros), não é menos verdade que os filmes da Pixar obrigaram todos os estrategas da animação de Hollywood, a começar pelos herdeiros de Walt Disney, a repensar conceitos e estruturas de produção.
E há um paradoxo que, mais do que nunca, importa sublinhar. Assim, desde os seus começos (a primeira curta-metragem, Luxo Jr., surgiu em 1986), a Pixar afirmou-se como uma casa totalmente ligada aos desenhos por computador: a aposta foi sempre o desenvolvimento de uma tecnologia que, na prática, deu origem a novas e sofisticadas formas de animação. Ao mesmo tempo, e de acordo com uma visão que remete em linha directa para a herança do próprio Walt Disney, os filmes da Pixar têm mantido uma metódica relação com o património clássico das narrativas, quer dos desenhos animados, quer da tradição literária das fábulas.
Brave é um exemplo claro dessa relação, já que propõe uma heroína, a princesa Merida (voz original: Kelly Macdonald), que começa por ser uma proeza de animação digital, com os seus cabelos ruivos sempre enredados e esvoaçantes; ao mesmo tempo, as suas aventuras lançam-nos numa viagem no tempo, até à Escócia do século X, uma época em que é suposto uma herdeira do trono submeter-se a preceitos ancestrais que a impedem de escolher o seu noivo.
É a primeira vez que a Pixar propõe uma figura feminina como protagonista, para mais emprestando-lhe um curioso discurso “feminista”: resistindo à obrigação de escolher o noivo entre os herdeiros dos clãs das “Terras Altas”, Merida envolve-se numa odisseia em que, à boa maneira da fábula, os poderes mágicos de uma bruxa a vão confrontar com as consequências familiares e simbólicas das suas escolhas.
Com Brave, Brenda Chapman esteve quase a transformar-se na primeira mulher a dirigir, a solo, um filme da Pixar (ela que, de facto, com O Príncipe do Egipto, lançado em 1998 pela DreamWorks, foi a primeira realizadora de uma animação de longa-metragem). O certo é que, durante o processo de preparação, surgiram “diferenças criativas” que levaram ao seu afastamento; Mark Andrews, veterano da Pixar (foi, por exemplo, supervisor do argumento de Ratatouille) assumiu o comando, surgindo Brave assinado pelos dois nomes.