segunda-feira, agosto 27, 2012

A volta ao mundo de Fernando Meirelles

Fernando Meirelles, brasileiro, através de uma produção de quatro países (Reino Unido/França/Áustria/Brasil) reencontra a inspiração de um texto austríaco de finais do século XIX: o filme 360 inspira-se numa peça de Arthur Schnitzler para filmar o turbilhão das relações contemporâneas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Agosto), com o título 'Fernando Meirelles encena a solidão contemporânea'.

No início do novo filme do cineasta brasileiro Fernando Meirelles, intitulado 360, vemos, algures em Bratislava, a personagem de Mirka (Lucia Siposová) numa sessão de fotografias “artísticas” [foto]. Depois, o fotógrafo pede-lhe para ela se despir, no final deixando-lhe indicações para um encontro num hotel a que deverá comparecer muito em breve... Rapidamente percebemos que Mirka passou, de facto, a integrar uma rede internacional de prostituição. Quando ela aguarda o seu primeiro cliente, Michael (Jude Law), inicia-se o movimento circular (360 graus) do próprio filme: através de um jogo de encontros e desencontros, coisas ditas e coisas ocultas, cada uma das personagens vai estabelecer algum tipo de relação com alguma das outras, nem sempre vislumbrando ou pressentindo a natureza dos factores que as poderão ligar. Daí o subtítulo, porventura dispensável, com que o filme acaba de ser lançado no mercado português: “ A Vida É um Círculo Perfeito”.
Para Meirelles, nascido em São Paulo (1955), esta é a confirmação plena do seu envolvimento com a produção ligada ao espaço anglo-saxónico. Foi o impacto internacional de Cidade de Deus (2002), sobre uma favela do Rio de Janeiro, que projectou o seu nome, abrindo-lhe novos mercados de trabalho. O Fiel Jardineiro (2005), adaptado de John Le Carré, seria a primeira consequência prática: com um elenco liderado por Ralph Fiennes e Rachel Weisz, o filme cumpriu uma boa carreira internacional (com mais de 80 milhões de dólares de receitas nas bilheteiras), consagrando Weisz com o Oscar de melhor actriz secundária.
Seguiu-se Ensaio sobre a Cegueira (2008), segundo o romance de José Saramago, tendo surgido 360 de uma possibilidade de colaboração com o argumentista inglês Peter Morgan, já duas vezes nomeado para os Oscars: na categoria de melhor argumento original, por A Rainha (2006), de Stephen Frears, e para melhor argumento adaptado, por Frost/Nixon (2008), de Ron Howard.
Morgan partiu de uma lendária referência teatral: a peça Reigen, escrita em finais do século XIX pelo austríaco Arthur Schnitzler. Reigen é um texto em grande parte celebrizado pela sua versão francesa, La Ronde, filmada por Max Ophuls em 1950 (aliás, a peça é frequentemente citada pelo título francês). O seu princípio dramático consiste em partir de uma série de encontros sexuais para definir inesperadas relações entre as suas personagens. Roger Vadim foi outro cineasta que adaptou a peça, em 1964, mantendo a acção no começo do século XX. Em 1998, o dramaturgo inglês David Hare escreveu a sua própria versão, The Blue Room, transferindo-a para o tempo presente (a estreia de The Blue Room ocorreu no Donmar Warehouse, em Londres, com Nicole Kidman no papel principal).
Com um elenco que inclui ainda o britânico Anthony Hopkins, o francês Jamel Debbouze e a brasileira Maria Flor, 360 evolui como uma espécie de fábula intercontinental, com cenas em Paris, Londres, Rio de Janeiro e Phoenix. A colaboração de Morgan e Meirelles dá origem a um desencantado retrato das relações humanas em pleno século XXI. Por um lado, este é um mundo de permanentes viagens e deslocações, e também de aceleradas formas de comunicação, garantidas por todos os gadgets das modernas tecnologias; por outro lado, as personagens lutam constantemente por contrariar as muitas formas contemporâneas de solidão, como se a proliferação de “mensagens” não fosse mais do que uma ilusão criada por um ambiente cada vez mais desumanizado.