terça-feira, julho 10, 2012

Para acabar com o cinema português

É muito fácil acabar com o cinema português: basta escolher a rotina da televisão contra o risco do labor cinematográfico. Ou ainda: basta menosprezar a ousadia da criatividade e favorecer a mediocridade do populismo. O problema não é (nunca foi) o de proclamar que todos os filmes portugueses são "bons" (ou "maus", se for caso disso...). O problema passa sempre pela elaboração de uma política de defesa da identidade artística e económica do cinema — ou existe, ou não existe; ou se trabalha com ela e para ela, ou se aceita o afogamento cultural do país na mediocridade televisiva... Este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Julho), com o título 'O cinema contra a televisão?'.

A aprovação na generalidade da nova Lei do Cinema acontece num momento particularmente grave para o cinema português. Não por causa dos próprios filmes, “bons” ou “maus”, tanto faz. Em boa verdade, mesmo não esquecendo a escassez de meios de produção (que a lei, justamente, tenta equacionar e corrigir), a vitalidade criativa do cinema português é invulgar: primeiro, porque possuímos uma invejável diversidade de olhares e estilos; depois, porque não há muitas cinematografias que, para além de outras distinções internacionais, se possam gabar de ter arrebatado uma Palma de Ouro de Cannes e um Urso de Ouro de Berlim no espaço de três anos (aconteceu com duas curtas-metragens de João Salaviza, respectivamente Arena e Rafa).
A gravidade da situação decorre de algo muito mais fundo. Na prática, os detractores crónicos do cinema português têm alguma razão quando, no seu militante cinismo, sugerem que os prémios internacionais nada resolvem... Claro que não. Sobretudo não resolvem a ignorância que esses mesmos detractores promovem. É uma ignorância seduzida pela arte menor da difamação. Dito de outro modo: passou a ser chique dizer que se desconhece tudo o que o cinema português vai gerando, ao mesmo tempo que se proclama que os filmes são “abaixo de cão”... Não estou a fazer caricatura: esta ideologia do menosprezo possui uma força imensa na sociedade portuguesa. Há mesmo quem se dê ao luxo de insultar os “planos longos” de Manoel de Oliveira [foto] sem nunca ter visto um dos seus filmes.
Há ainda outra faceta dessa ideologia: tem a ver com o sistemático e, também ele, militante alheamento dos operadores televisivos face às condições de existência do cinema português. Foi, de facto, impressionante observar o coro de resistência face ao quadro de financiamentos propostos pela nova lei (que, escusado será dizer, carece ainda de muitos regulamentos que irão definir o seu equilíbrio, alcance e eficácia). Não que falte legitimidade a esses mesmos operadores para defenderem a consistência financeira das suas programações e estratégias. Antes porque o seu discurso provém sempre de uma hipótese apocalíptica: a defesa da simples existência económica e artística do cinema continua a ser entendida como uma ameaça automática para o espaço televisivo.
Mais de três décadas passadas sobre a imposição da telenovela como modelo audiovisual dominante na sociedade portuguesa, valeria a pena inverter o pânico. E perguntar: como é que a telenovela tem sido uma ameaça para o reconhecimento das especificidades do cinema (português ou não)?
Fica uma certeza: há em Portugal uma cultura de apagamento simbólico do cinema (de qualquer nacionalidade) que impede até que se pense aquilo que, melhor ou pior, tem sido experimentado em muitos países europeus. A saber: uma articulação inteligente e mutuamente produtiva entre cinema e televisão.