Marco Ferreri está de volta aos nossos circuitos, desta vez através do mercado do DVD. É uma boa notícia no sentido da (re)descoberta de um nome marcante da produção italiana dos anos 60/70 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Junho), com o título 'O cinema "polémico" de Marco Ferreri'.
Recentemente, chegaram ao mercado português do DVD três títulos de um dos mais importantes cineastas italianos do pós-guerra: Marco Ferreri (1928-1997). São eles, por ordem cronológica de produção: A Motoreta (1960), um dos filmes apostados em superar a imensa herança do neo-realismo, ainda que sem perder o contacto com personagens e cenários típicos do quotidiano; A Grande Farra (1973), centro de toda uma lendária polémica sobre a “dignidade” e os “limites” do próprio cinema, historicamente indissociável do impacto de O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci (lançado um ano antes); e Adeus Macho (1978), primeira experiência do realizador em língua inglesa, em cenários novaiorquinos, com uma estrela francesa (Gérard Depardieu).
A relativa indiferença de muitos sectores da comunicação social em relação a tais novidades é, obviamente, normal. Que é como quem diz: faz parte de uma norma que tende a menosprezar o culto da memória, a não ser quando as evocações são “justificadas” por datas mais ou menos oficiais e efemérides com grande visibilidade televisiva. Seja como for, vale a pena perguntar: que aconteceu para que A Grande Farra, filme tão admirável e tão perturbante (ontem como hoje), surja assim esvaziado, não apenas do seu poder polémico, mas da simples afirmação histórica de um inconfundível radicalismo temático e simbólico?
Há uma resposta cândida e complacente para tal interrogação. Ou seja: os tempos mudaram e já ninguém se “escandaliza” com a história de A Grande Farra... Será mesmo assim? Afinal de contas, vivemos num mundo em que muita imprensa e televisão gastam gigantescas fatias de espaço e tempo para expor o escândalo apocalíptico resultante do facto de uma vedeta se ter descuidado e... mostrado um mamilo (e não estou sequer a inventar). Ao mesmo tempo, A Grande Farra encena o terrível negrume de um grupo de personagens que decide comer, comer, comer... até morrer. E alguém quererá convencer-me que “isso” faz de Ferreri um narrador banal, incapaz de concorrer com os conflitos em torno de um adultério ou uma herança encenados numa qualquer telenovela em horário nobre?
Infelizmente, a conjuntura é menos irónica e incomparavelmente mais trágica. Dito de outro modo: vivemos num tempo de adormecimento dos olhares e pensamentos em que até os “escândalos” são quotidianamente formatados. O problema não é que o drama interpretado por um notável leque de actores (Marcello Mastroianni, Philippe Noiret, Michel Piccoli e Ugo Tognazzi) seja mais ou menos perturbante. O problema é que os modos de olhar passaram a ser dominados por uma ansiedade de cariz mais ou menos publicitário: espera-se a brevidade de um “clip” com uma gratificação mais ou menos pueril, consomem-se fragmentos atrás de fragmentos e nunca se pára para pensar no que vemos. No que somos. Ou no que podemos ser.