Em 1889, Friedrich Nietzsche viu um cavalo a ser batido pelo seu dono, numa rua de Turim: chocado e emocionado, agarrou-se ao animal, desfalecendo. Este episódio mais ou menos lendário (tido como prenúncio simbólico da decomposição mental de Nietzsche nos seus anos finais) serve de ponto de partida ao extraordinário O Cavalo de Turim. É, enfim, um filme de um grande cineasta húngaro, Béla Tarr, a chegar às salas portuguesas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Junho), com o título 'A morte interminável de Deus'.
Filmado sob o signo de Friedrich Nietzsche, O Cavalo de Turim colhe da herança do filósofo alemão muito mais do que a referência ao episódio que justifica o seu título. Aliás, o facto de esse episódio persistir através da ambígua conjugação da crónica histórica e da deriva lendária, empresta ao filme uma respiração “nietzschiana” que talvez se possa resumir através de uma solidão brutal. A sua definição começa na terrível indiferença divina ou, se preferirem, na interminável morte de Deus. Para usarmos as palavras do filósofo: “Deus morreu: mas a natureza humana é de tal ordem que é muito provável que, durante milhares de anos, haja grutas em que a sua sombra continuará a ser vista.” (in A Gaia Ciência, 1887).
Para sermos exactos, Béla Tarr apenas filma ciclos de vida: o dono do cavalo, a sua filha, as rotinas de uma quinta que parece emergir da terra como o cenário apocalíptico de todas as perdições humanas. Mas o que vemos não é tanto a banalidade da rotina como a cruel nitidez do tempo. O senso comum (arma dilecta do populismo televisivo) dirá, por certo, que a repetição dos gestos se torna redundante... O que desse modo se ignora é a própria questão existencial do tempo e o modo como a sua formulação implica o mais radical dos desafios cinematográficos. A saber: como encenar a consciência muito humana, demasiado humana, da morte?
A resposta de Béla Tarr envolve uma estranha e fascinante musicalidade que faz do filme, não o “relato” de uma experiência existencial, mas a íntima celebração dessa própria experiência. Em boa verdade, o cineasta convoca-nos para um cinema em que o simples efeito do vento na estabilidade dos corpos adquire a dimensão de uma escultura terrena. O céu pode esperar.
Para sermos exactos, Béla Tarr apenas filma ciclos de vida: o dono do cavalo, a sua filha, as rotinas de uma quinta que parece emergir da terra como o cenário apocalíptico de todas as perdições humanas. Mas o que vemos não é tanto a banalidade da rotina como a cruel nitidez do tempo. O senso comum (arma dilecta do populismo televisivo) dirá, por certo, que a repetição dos gestos se torna redundante... O que desse modo se ignora é a própria questão existencial do tempo e o modo como a sua formulação implica o mais radical dos desafios cinematográficos. A saber: como encenar a consciência muito humana, demasiado humana, da morte?
A resposta de Béla Tarr envolve uma estranha e fascinante musicalidade que faz do filme, não o “relato” de uma experiência existencial, mas a íntima celebração dessa própria experiência. Em boa verdade, o cineasta convoca-nos para um cinema em que o simples efeito do vento na estabilidade dos corpos adquire a dimensão de uma escultura terrena. O céu pode esperar.