domingo, junho 10, 2012

As Quatro Estações no século XXI


Uri Caine e Theo Bleckman juntam um olhar do nosso tempo a uma leitura diferente d’As Quatro Estações de Vivaldi (em interpretação do ensemble Forma Antiqva). A edição é da Winter & Winter.

Há uns anos, a andar pelas ruas de Praga, reparava na quantidade espantosa de salas que ofereciam programas de música clássica para turista ver. Quase tantas quanto as lojas de cristais da Boémia... E se havia algo em comum entre quase todas era a presença d’As Quatro Estações de Vivaldi nos programas que flyers e cartazes espalhavam pelos pontos turisticamente mais estratégicos da cidade. Há, de facto, obras que o tempo fez coisa de todos e para as quais certamente já se perdeu a contabilidade do número de vezes que conheceram gravação para edição em disco. E tal como entre as ruas de Praga, nos escaparates de uma loja de discos não faltam gravações disponíveis, a cada nova proposta que entra em cena cabendo o desafio de ser particularmente inovadora ou dotada de uma personalidade que a distinga das demais, sob pena de se diluir entre as tantas outras que já existem. É o que acontece com esta nova gravação que a editora Winter & Winter colocou em cena este ano. Juntando a música do compositor barroco italiano a contribuições do nosso tempo que vincam uma outra forma de olhar para Vivaldi.

O ponto de partida é o clássico conjunto de concertos que Vivaldi compôs em 1723 expressando uma ideia de programa narrativo e sugestivo a acompanhar cada um dos andamentos que caracterizam as quatro estações do ano. Os concertos foram desde logo acompanhados por quatro sonetos que, atribuídos a Vivaldi (facto que não é unânime), aprofundam a caracterização dos retratos que a música sugere. Nesta visão junta-se a música e o texto. E como? Colocando a partitura de Vivaldi nas mãos do ensemble espanhol Forma Antiqva (com reconhecidas credenciais na música aquele tempo) e encontrando nas palavras dos sonetos um espaço de comunicação direta com formas musicais de hoje, entrando aí em cena a colaboração entre o cantor Theo Bleckman e o visionário Uri Caine, as “vozes” do piano e das electrónicas acolhendo como cenários palavras que chegam dos tempos da música que estes sonetos agora entrecruzam.

Uri Caine é um músico com reconhecido interesse por formas de abordagem contemporâneas a ideias, ecos e obras de outros tempos. Pianista e compositor com tanto interesse pelos espaços do jazz como pelos da música clássica, propõe abordagens que se distinguem da forma como Keith Jarett (outro importante pianista com obra essencialmente talhada nos espaços do jazz) abordou já peças de Bach ou Shostakovich pelo modo como não limita a sua abordagem à expressão de uma personalidade interpretativa de alma jazzística. Na verdade, Uri Caine interage, molda e transforma a música. E ao abordar umas Variações Goldberg de Bach ou a trabalhar a música de compositores como Wagner, Mahler, Mozart ou Schumann (como o fez já em vários discos que editou na Winter & Winter) procura o seu lugar num espaço que tem esta música que evoca não como destino mas sim um ponto de partida. Não interpreta, portanto. Reinventa. Assimila e projeta. Cria, tal e qual Scott Walker abordou Jaques Brel ou Brad Mehldau trabalhou os Radiohead. Ou seja, procurando-se a si mesmo a partir de uma matéria prima.

Nesta nova visão d’As Quatro Estações a abordagem de Caine e Bleckman é contudo distinta de outros trabalhos de diálogo com compositores de outros tempos. Os concertos de Vivaldi surgem numa clara e cuidada leitura “canónica” pelo grupo espanhol, a presença do nosso tempo nesta visão habitando apenas a forma de cenografar (de forma magnífica, sublinhe-se) os sonetos que surgem integrados em cada estação, as palavras de há 300 anos viajando assim no tempo, com elas trazendo depois a música que assim encontra um espaço diferente (e entusiasmante) de expressão no presente.