sábado, maio 26, 2012

Nos 30 anos de David Sylvian (1)

Assinalam-se este ano os 30 anos sobre o início da carreira a solo de David Sylvian. Esta é parte de um texto que foi publicado a 10 de março de 2012 no suplemento Q., do DN, com o título 'Ao afastar-se de tudo David Sylvian encontrou uma voz'.

A 12 de maio de 1983, quando se dirigia para uma sessão fotográfica, David Sylvian (1) sofreu um acidente de viação de pequenas proporções do qual saiu com ferimentos ligeiros. Mas no dia seguinte a notícia que chegava aos tabloides no Reino Unido dava conta de algo bem pior, usando até mesmo palavras como “horror” e “cicatrizes” em destaque (2). Rotulado algum tempo antes pela imprensa musical mais jovem como o “homem mais belo do mundo” (cognome que durante anos acompanhou ainda vários artigos sobre o músico), Sylvian via-se confrontado com o que eram consequências diretas da grande popularidade que os Japan (3) tinham alcançado nos últimos meses. Fugir não apenas daquela imagem mas do próprio estatuto que a definira já era preocupação na linha da frente dos seus objetivos. E, de facto, em breve nada seria como dantes.

Quase 30 anos depois, nenhum jornal daria notícia de semelhante incidente se agora ocorresse. Não que Sylvian se tenha transformado numa personagem invisível ou mesmo incógnita. Pelo contrário, é um dos músicos mais respeitados do nosso tempo, figura que em seu torno definiu um fenómeno de culto e autor de uma obra que já cruzou géneros musicais e chamou colaboradores de renome em vários campos. O que mudou foi a sua relação com a “fama”. E na verdade, depois do fim dos Japan, a sua relação com os outros procurou formas bem diferentes de relacionamento.

“Criar música é um ato de comunicação, e é natural que se deseje comunicar com o maior número possível de pessoas”(4), deixou claro o músico quando em 1999 assinalava o seu regresso aos discos em nome próprio com Dead Bees on a Cake. Mas David Sylvian sabe que não fala hoje para multidões. De resto, foi ele mesmo quem chegou a dizer que a sua música “é para quem está numa sala sozinho consigo mesmo ou num patamar ainda pior. É introspetiva de um modo que deixa algumas pessoas nervosas. O tipo de pessoas que ligam a televisão assim que sentem que estão sozinhas não gostam da minha música. Fá-las sentir terrivelmente desconfortáveis”(5).

The Last Romantic
Desde que se afastou dos focos de atenção da imprensa pop (o que acontece gradualmente entre o fim dos Japan e o lançamento do álbum de estreia a solo Brilliant Trees, de 1984, e o EP instrumental Words With The Shaman, de 1985), Sylvian encontrou nova zona de conforto na periferia dos acontecimentos: “Nos primeiros anos, é certo, rumei um pouco ao centro, mas reconheci que não era esse o meu lugar. Não só na minha música mas também na minha vida pessoal. Cada vez que me aproximo do centro das coisas nada resulta. Assim que regresso à periferia sinto-me confortável e posso finalmente respirar. A minha situação na indústria discográfica reflete assim a minha situação na vida em geral (6).” Em palavras que Martin Power recuperou em The Last Romantic (biografia de David Sylvian que recentemente conheceu noova edição revista e atualizada), o próprio Sylvian explicava que muitas das suas canções têm sobretudo a ver com um desejo de aceitação, “um desejo de pertencer, ao mesmo tempo que nelas um sentido de isolamento, de não conseguir pertencer em pleno...” O músico defende aí que “a sociedade ideal pode existir, mas tem de ser baseada em leis universais”. De certa maneira é por isso que sinto o seu isolamento: “Sou uma pessoa antissocial porque não consigo responder à sociedade onde vivo (7).” Em 2009, numa entrevista a Biba Kopf na revista Wire apresentava-se como alguém que vive 90 por cento dos seus dias sozinho. Explica aí que levou algum tempo a ajustar-se a esse modo de vida. Sylvian defende que para “produzir algo fresco ou novo ou de valor” tem de se afastar “das influências comuns da sociedade”. Buscando o isolamento procurava assim um patamar onde lhe fosse possível estar longe das presenças conscientes e inconscientes que a sociedade poderia exercer sobre si “vivendo em cidades ou ensopando-se nos media”(8). Diz assim que quanto mais se afasta mais sente que esta é a sua voz verdadeira. Uma voz que deu importantes passos de libertação entre os álbuns Blemish (2003) e Manafon (2009) onde o espaço da improvisação ganhou, mais do que nunca, peso maior na sua forma de criar música.

(1) David Sylvian – De seu nome real David Alan Batt, nasceu em 1958 em Bekenham (Kent) no Reino Unido.
(2) Segundo recorda o livro ‘The Lats Romantic’, de Martin Power, na página 75, o ‘The Sun’ terá publicado uma notícia com o título “World's Loveliest Man in Scar Horror” (que poderemos traduzir como “O homem mais lindo do mundo num horror de cicatrizes”)
(3) Japan – A banda na qual David Sylvian militou entre 1974 e 1982 e da qual foi o vocalista e principal compositor. A seu lado estavam Steve Jansen (baterista do grupo e seu irmão, tem sido dos seus mais regulares colaboradores), Richard Barbieri (teclista e colaborador nos primeiros discos a solo de Sylvian) e Mick Karn (baixista, convidaria depois Sylvian a cantar em dois temas do seu álbum de 1987 Dreams Of Reason Produce Monsters). A formação original do grupo incluía ainda o guitarrista Rob Dean, que abandona o grupo no final das sessões de ‘Gentleman Take Polaroids’, em 1980)
(4) in ‘O Desejado’, entrevista a David Sylvian publicada no suplemento ‘DNmais’ a 27 março de 1999
(5) in ‘The Last Romantic’, de Martin Power (Omnibus Press, 1998), pág. 130
(6) in ‘Um Lento Olhar’, entrevista a David Sylvian publicada no suplemento DNmais a 28 de outubro de 2000
(7) in ‘The Last Romantic’, de Martin Power (Omnibus Press, 1998), pág. 133
(8) in ‘The Invention of Solitude’, de Biba Kopf, publicado na edição de setembro de 2009 da ‘Wire’