Chegados à recta final da 65ª edição do Festival de Cannes, vale a pena sublinhar algo de muito simples: tem sido uma das melhores edições dos últimos anos, não apenas pelas qualidades das obras apresentadas, mas também pelo sentido simbólico, aglutinador, de vários momentos, incluindo a presença de Bernardo Bertolucci na sessão do seu belíssimo IO E TE (extra-concurso), ele que já não filmava desde 2003 (Os Sonhadores). Além do mais, o reforço da secção 'Cannes Classics' volta a provar que, pelo menos neste contexto, a memória do cinema é coisa séria e sistematicamente defendida.
Em registo necessariamente esquemático, aqui ficam alguns destaques do certame:
1: três grandes filmes (quatro, com o de Bertolucci), desses que nos devolvem o cinema como coisa íntima da nossa vida, parte integrante do que somos, vemos e pensamos:
- AMOUR, de Michael Haneke
- COSMOPOLIS, de David Cronenberg
- VOUS N'AVEZ ENCORE RIEN VU, de Alain Resnais
Este último, uma revisitação genial das ambivalências do teatro, poderá trazer a Resnais uma Palma de Ouro cujo simbolismo seria necessariamente especial, até porque ele é, nesse aspecto, um dos "esquecidos" da geração da Nova Vaga francesa.
2: uma generalizada resistência a todas as imposturas narrativas da televisão, através de filmes que discutem a prova de realidade que cada imagem (e som) envolve; nesta perspectiva, o destaque, também ele eminentemente simbólico, vai para REALITY, de Matteo Garrone, desmontando a lavagem de cérebros promovida pelo Big Brother televisivo. A não esquecer a aventura japonesa de Abbas Kiarostami que tem um título de uma canção clássica (interpretada por Ella Fitzgerald): LIKE SOMEONE IN LOVE.
3: um reforço da vocação realista do cinema moderno, através de filmes que apostam em lidar com situações que envolvem uma grande complexidade humana e política. Três exemplos:
- PARA ALÉM DAS COLINAS, de Cristian Mungiu
- DEPOIS DA BATALHA, de Yousry Nasrallah
- THE ANGELS' SHARE, de Ken Loach
4: um elogio para os não-alinhados, mesmo em tom menor, sempre à procura de derivações poéticas mais ou menos consistentes ou conseguidas:
- HOLY MOTORS, de Leos Carax
- MOONRISE KINGDOM, de Wes Anderson
5: um magnífico filme de género (thriller), vestido com roupagens de parábola política: KILLING THEM SOFTLY, de Andrew Dominik, com Brad Pitt.
6: uma desilusão, discreta na sua evidente competência profissional, mas amarga pelo simbolismo que arrasta (ao convocar Jack Kerouac): ON THE ROAD, de Walter Salles.
7: enfim, o contundente, angustiado e muito terno retrato da juventude, IO E TE, assinado por Bertolucci, com dois brilhantíssimos actores — Tea Falco e Jiacopo Olmo Antinori [foto] — que apenas deixa uma dúvida: porque é que um filme com esta intensidade não está na competição oficial?