PSYCHO (1960), de Alfred Hitchcock |
A televisão gosta de se definir como "exterior" à cultura... Mente, claro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Abril), com o título 'Futebol é... cultura'.
1. A televisão como cultura, ou a questão cultural nas televisões, não é (nunca foi) um mero problema de quantidades. Claro que não é indiferente que proliferem telenovelas, apanhados e reality shows, ao mesmo tempo que tudo o que seja minimamente inteligente continua a ser sacrificado em espaços mais ou menos noctívagos. A questão cultural nas televisões pouco ou nada tem a ver com a formulação tradicional: “Onde estão os espaços culturais?”. Depende antes de uma interrogação transversal que as próprias televisões, quase sempre, evitam enfrentar. A saber: “Que cultura se faz, fazendo televisão?”
2. O exemplo desta segunda-feira, com os muitos delírios em torno do Sporting-Benfica, é bem revelador. E houve de tudo um pouco, desde as “antecipações” do jogo (com repórteres em frente dos hotéis das equipas, a informarem, entusiasmados, que não têm nada para informar...) até às “análises” empenhadas em escalpelizar até à mais pura pornografia mediática os penaltys que regem o destino deste país. Se cada obra-prima de Alfred Hitchcock fosse mostrada e analisada durante as mesmas longas horas, seríamos o país mais cinéfilo do mundo.
3. Ora, importa repetir o mais rudimentar (que é também aquilo que muitos agentes televisivos tentam, cinicamente, mascarar): a histeria do Sporting-Benfica não é uma expressão de “informação” ou “divertimento”, magicamente isenta de conotações culturais. Muito pelo contrário: ao promoverem essa histeria, as televisões estão a escolher valores muito precisos que envolvem a consagração do gratuito informativo e também uma continuada tolerância perante as mais variadas formas de ressentimento e facciosismo. Considerar que o tratamento do futebol, seja de que forma for, é algo que isenta as televisões de pensar as suas responsabilidades na dinâmica cultural do país, eis o logro que importa desmascarar. Em boa verdade, podemos (e devemos) reactivar uma velha herança do 25 de Abril que nos garante que... tudo é cultura. As televisões podem não querer lidar com isso, mas tal recusa é ainda profundamente cultural.