Para quê "mudar" a história de Branca de Neve? Sobretudo quando apenas se muda para ser mais "giro"... Este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Abril), com o título 'A arte de contar uma história'.
Walt Disney terá dado várias voltas no túmulo... Não que Branca de Neve seja um exclusivo dos seus estúdios, tanto mais que o conto dos irmãos Grimm foi publicado em 1812, portanto 125 anos antes da longa-metragem Branca de Neve e os Sete Anões. Acontece que o imaginário da fábula é, para muitas gerações, indissociável deste filme. E não parece haver uma boa razão para “mudar” a história apenas para fingir que se é muito moderno...
Deparamos, afinal, com um vício de muito cinema contemporâneo: Espelho Meu, Espelho Meu, Há Alguém Mais Gira do que Eu? reduz a relação criativa com as memórias literárias e cinematográficas à fabricação de variações insólitas (incluindo o momento em que Branca de Neve recebe a maçã envenenada) que mascaram um problema de fundo. Ou seja: o (não) saber contar uma história.
O filme possui um trunfo forte no guarda-roupa de Eiko Ishioka, colaboradora de Paul Schrader (Mishima) e Francis Ford Coppola (Drácula) que aqui assinou o seu derradeiro trabalho (o filme é, aliás, dedicado à sua memória). Seja como for, não se trata de um problema de adereços, mas sim de uma débil conceptualização dramática que o realizador Tarsem Singh agrava através de uma deficiente direcção de actores. E não é nada agradável ver Julia Roberts “estrangulada” na personagem da Rainha, tentando garantir as emoções e tensões que nada, à sua volta, consegue sustentar.
Enfim, regressa o drama dos títulos portugueses. Porquê explicitar o original (Mirror, Mirror), para mais transformando a expressão clássica, “mais bela do que eu”, no muito frívolo “mais gira do que eu”? Decididamente, se Walt Disney regressasse a este mundo, ficaria chocado com tantas liberdades criativas e perceberia que a sua arte corre o risco de não ter herdeiros.