segunda-feira, janeiro 30, 2012

Pepe, Messi, a televisão e a Europa

METROPOLIS (1927), de Fritz Lang
Num mundo de crescente subserviência do discurso político à formatação televisiva, há quem pense que uma pisadela de Pepe a Messi é um assunto para o... Parlamento Europeu!!! — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Janeiro), com o título 'Na Europa com Pepe e Messi'.

O défice de reflexão da maioria da classe política europeia sobre as imagens televisivas é gritante. Os agentes políticos ignoram, literalmente, os valores e poderes televisivos, confortando-nos com os sucessos mais ou menos atribulados da digitalização do continente e do planeta. Um sintoma recente de tal estado de coisas veio do Parlamento Europeu, com dois deputados catalães (Ramon Tremosa e Raül Romeva) a mobilizarem-se para enfrentar um facto, no mínimo, decisivo para os destinos da nossa abalada Europa. A saber: a pisadela de Pepe a Lionel Messi no jogo Real Madrid-Barcelona!
Confesso que comecei por pensar que se tratava apenas de uma banal manifestação clubista, pelo que esperei pelo contraponto, ou seja, a denúncia da vergonhosa teatralidade de dor e sofrimento como um dos mais sofisticados recursos do “melhor jogador do mundo” (embora devamos reconhecer que, na arte do fingimento, o colega Mascherano possui um talento dificilmente superável). Mas não. Os deputados não estavam a brincar. De tal modo que formularam uma pergunta muito directa: “Pensa a Comissão Europeia que factos tão graves, vistos por milhões de pessoas, entre as quais crianças, devem ficar impunes?”. Mais ainda: inquietos com a “violência no desporto”, lembraram que “se Pepe não for sancionado, isso será entendido como uma acção neutra da sociedade.”
Estaríamos perante uma brilhante comédia do absurdo, não se desse o caso de depararmos, assim, com uma miséria de pensamento cujos efeitos se fazem sentir todos os dias, da cena política às esferas mediáticas. Temos mesmo uma classe política que, há décadas, assiste na mais absoluta boçalidade à degradação brutal do espaço televisivo. Por norma, o triunfo das atrocidades humanas e morais do modelo “Big Brother” (do entertainment às notícias) não suscita a mais ténue dúvida existencial. Bem pelo contrário, defende-se o funcionamento institucional da Europa como um gigantesco “Big Brother”: Pepe pisa Messi e só nos resta correr a tapar os olhos e ouvidos das nossas indefesas crianças...
Escusado será lembrar que o grau de intencionalidade de tão homérica pisadela nada tem a ver com assunto: convenhamos que a consciência de Pepe não justifica a abertura de um dossier político. O que está em causa é de outra natureza: intervenções deste teor enraízam-se numa ideologia de patético voluntarismo em que se reduz o todo social a um colectivo determinista, momento a momento vigiado pela “justiça popular” de um aparelho legislativo inquestionável (leia-se: a televisão). Sobre essa consagração abstracta de uma ordem sem rosto, vale a pena rever Metropolis (1927), de Fritz Lang, memória europeia cuja actualidade permanece. Em atenção aos mais susceptíveis, garanto que Lang não está na lista de futuras transferências para o Real Madrid.