sexta-feira, dezembro 30, 2011

Quando estala o verniz..


O desafiar das fronteiras entre o teatro e o cinema não é coisa nova. Tem, de resto, anos de história e uma mão cheia de bons exemplos a citar como o serão os casos de um Gouttes d'eau sur pierres brûlantes de Ozon (a partir de uma peça de Fassbinder), um Quem Tem Medo de Virginia Woolf, de Albee, na visão clássica de Mike Nichols ou a magistral adaptação de Angels In America, de Tony Kushner, novamente por Mike Nichols (para o pequeno ecrã). Agora podemos juntar Deus da Carnificina (no original, Carnage) de Roman Polanski a esta galeria de momentos de excepção.

Com argumento co-assinado pelo realizador e pela autora da peça original (Yasmina Reza), o filme aceita o dispositivo espacial característico de um palco. Ou seja, centra praticamente toda a acção numa sala, hall e patamar frente à porta, numa ocasião entrando num escritório, numa outra na cozinha, visitando ainda uma casa de banho. Todos eles espaços fechados num apartamento (supostamente em Brooklyn, apesar de toda a rodagem ter decorrido em Paris). De resto, só o genérico e créditos finais abrem a objectiva da câmara ao exterior, em concreto ao parque em Brooklyn (com o South Sea Port e o bairro financeiro de Manhattan ao fundo) onde acontece o gatilho que desencadeia tudo o que depois acontece.

Num parque, um dia, um rapaz agride outro com um pau, partindo-lhe dois incisivos. Os pais do agressor (interpretados por Kate Winslet e Christoph Waltz) visitam os da vítima (Jodie Foster e John C. Reilly) para, delicada e tranquilamente dar conta do sucedido e tratar do que deve ser tratado. O clima polido e civilizado é porém coisa de fina camada sobre os quatro protagonistas. E ao primeiro desvio da conversa instala-se um conflito que, palavra após palavra, aprofunda o estado de tensão entre todos. Estala o verniz, dizem-se verdades, trocam-se petardos que revelam frustrações. Se os quatro magníficos actores são pilar estrutural que suporta o filme, a visão de Polanski consegue, de forma discreta mas exemplar, sublinhar pela forma como os observa, a evolução do estado de tensão entre os dois casais. Um texto que cativa, actores que o vestem a rigor e um trabalho de realização de quem sabe olhar fazem deste um momento imperdível do cinema que vimos este ano em sala.