domingo, outubro 23, 2011

De Athens para o mundo...


Este texto, assinalando o fim da carreira dos R.E.M., foi originalmente publicado na edição de 8 de Outubro do Q., do Diário de Notícias, com o título E Depois do Adeus.

Convenhamos que não foi a mais surpreendente das notícias. Em finais de Setembro o site oficial dos R.E.M. anunciava a separação do grupo. “Afastamo-nos com um sentido de gratidão, de finalidade, de espanto pelo que conquistámos”, escreviam na nota comum que ali publicavam. Michael Stipe, o vocalista, reflectia depois sobre aquilo a que chamava a “arte de estar numa festa”, lembrando que esta se manifesta pelo modo de como dela se sai. Peter Burke referia a amizade que, tantos anos depois, ainda os une. Mike Mills lançava uma questão em frente: “e a seguir?...”.

Foram 31 anos de vida conjunta, com discos editados a partir de 1981 (a estreia fazendo-se numa primeira versão de Radio Free Europe, que pouco depois seria transformado no primeiro “clássico” da banda). Mas desde cedo sob um clima de aclamação que, aos poucos, cresceu à sua volta, os levou para lá da sua cidade, do seu estado, deles fazendo mesmo uma das mais importantes forças da música popular norte-americana do nosso tempo, deixando uma obra que junta 15 álbuns de originais, uma multidão de singles, inúmeras memórias de concertos vividos frente a plateias das mais variadas latitudes e uma tão expressiva lista de canções tornadas êxito global entre as quais contamos temas como Man On The Moon, Losing My Religion, Stand, It’s The End Of The World As We Know It, The One I Love, Shiny Happy People ou Everybody Hurts. E basta evocar os títulos para que as escutemos de memória.
 
É verdade que estavam longe dos seus melhores dias. Nos últimos dez anos tinham mesmo lançado dois álbuns claramente menores. Foram eles Around The Sun (2004) e o mais recente Collapse Into Now (2011) onde pouco mais pareciam que corresponder a mínimos olímpicos. Reacenderam pontualmente entusiasmos quando, ao som de Accelerate (2008) pareciam reencontrar a intensidade primordial da electricidade dos seus discos dos anos 80. Mas na verdade, desde que se haviam desafiado a explorar (delicadamente) as electrónicas em Up (1998), há muito que não víamos na música dos R.E.M. nem o poder de encantamento nem a inquietude de outros tempos.

Os R.E.M. por alturas da edição de 'Murmur'
Como tantas outras bandas da sue geração foram um entre muitos casos nascidos em clima pós-punk. Mas vários temperos fizeram a diferença. Em primeiro lugar a cidade onde nasceram: Athens, na Geórgia. “Um lugar comum de tantas vezes repetido, mas que conferiu à banda uma base ideal para o seu trabalho”, como explicam Dave Bowler e Bryan Dray em From Chronic Town to Monster (Citadel Press Book), biografia do grupo de 1995. A cidade, continuam, “deu-lhes tempo para se desenvolverem como uma boa banda antes de serem afectados pelo brilho das expectativas da grande cidade e, depois, ofereceu-lhes toda uma rica tradição de fábulas, heranças das quais muitas coisas tiraram”. s palavras que habitam as suas canções nem sempre são de leitura linear. Mas sabem do que tratam.

Nascidos nos primeitos tempos da era Regan, perante uma América entregue a um reencontro com valores conservadores, os R.E.M. cedo entenderam o verdadeiro poder da palavra. Esses dias, “que serviram de cenário à gravação de Murmur” representam “uma era em que o discurso político se expandiu do patamar da simples fala para uma forma de armamento”, recorda J. Niimi em Murmur (livro de 2005 da série 33 1/3 integralmente dedicado ao álbum de estreia dos R.E.M., editado em 1983) Em From Chronic Town To Murmur recorda-se o momento em que Michael Stipe sugeriu que “o que os R.E.M. podem oferecer é uma música que se pode dançar se se quiser dançar, que se pode ignorar ou usar como mobília, mas está ali também algo que se pode ouvir e levar alguém a dizer ‘isto é inteligente’ ou, pelo menos, ‘isto não é estúpido’. Não somos uma banda de mensagens mas há coisas na música e na maneira como nos apresentamos que, espero, as pessoas possam depois levar para casa consigo”.

A relação com o público também foi central no processo que destacou os R.E.M. das demais bandas da sua geração. Tendo evitado desde sempre quaisquer flirts com a ideia de fama fácil, não procurando um estatuto de celebridades puderam, como defendem Bowler e Dray, “manter uma liberdade no discurso, apresentando-se como defensores de um certo senso comum”. Note-se que nunca os vimos nas capas dos seus discos. “Porque nos interessava mais o que esrava lá dentro”, como justificou o baixista Mike Mills em entrevista ao DN publicada em 17 de Junho de 1999.




Mesmo assim, o sucesso e personalidade dos R.E.M. nunca seria o mesmo sem a presença, na proa, de um homem com a força vocal e o carisma de um Michael Stipe. Nem a sua carreira teria sido a que foi sem a sua capacidade em dominar a escrita de canções, reconhecendo o poder de uma melodia e a capacidade de ecantamento que pode nascer de um refrão inesquecível.

Como tantas outras bandas, os R.E.M. encontarram-se em clima universitário. Estávamos em 1980 e entre os músicos, que se foram conhecendo aos poucos, havia desde logo uma partilha de interesses pela música de referências como Patti Smith, os Television ou os Velvet Underground. Não levavam debaixo do braço uma agenda revolucionária (em termos musicais, entenda-se) e, 31 anos depois, reconhecemos que não contamos necessariamente com os seus discos na hora de identificar as grandes convulsões que abriram novas portas ou inventaram outros caminhos na história da música dos oitentas a esta parte. Porém a sua presença foi marcante. Pelo simples facto de, usando ferramentas comuns a tantas outras bandas e linguagens “clássicas” terem inscrito na histórias canções (e mesmo álbuns) sem os quais não completamos o retrato da banda sonora dos anos em que viveram. “Ao contrário dos Nirvana, cujo sucesso definiu uma era, os R.E.M. (e os seus primos transatlânticos U2) trabalharam o seu caminho até se transformaram em presenças familiares sem nunca desencadearem quaisquer alarmes revolucionários do tipo times-they-are-a-changing”, lia-se na entrada assinada por Ira Robbins na quinta edição do então célebre The Touser Press Guide to 90’s Rock (Fireside, 1997). odavia, em início de vida, os R.E.M. eram um nome em tudo relacionado com espaços de vivência “alternativa” no panorama rock norte-americano do início dos anos 80.

Em 1982 editam o EP Chronic Town, que alarga os focos de atenções além do universo em volta de Athens (que havia reagido aos sons de Radio Free Europe, um ano antes). Seguiu-se, em 1983, o álbum de estreia Murmur que confirma expectativas e deles faz um nome de referência de uma nova geração de bandas rock norte-americanas antecedendo, assim, nomes como os Pixies ou Throwing Muses , que em meados da década alargariam o foco das atenções a mais acontecimentos no panorama “alternativo” dos EUA. De disco para disco arrumadam ideias, aprumavam, formas, afinavam uma linguagem, contando com a personalidade vocal de Michael Stipe como uma das principais marcas de identidade do seu som. Mas não a única. Reckoning (1984), Fables Of The Reconstruction (1985), Lifes Rich Pageant (1986 e o seu primeiro disco de ‘platina’, conquistado no Canadá) e Document (1987) concluem uma primeira etapa, a cada ano o grupo solidificando e ampliando a sua base de admiradores. A assinatura pela multinacional Warner Brothers abre novas perspectivas, que os álbuns Green (1989) e Out Of Time (1991) vislumbram e Automatic For The People (1993) transforma em caso de popularidade global sem que, em algum momento, alguma verdade na sua música fosse comprometida. Segiu-se uma incursão mais eléctrica em Monster (1994), uma retirada para climas mais polidos em New Adventures In Hi-Fi (1996). E, depois do já referido Up, uma continuidade menos entusiasmada em Reveal (2001), Around The Sun e o recente Collapse Into Now, com pontual regresso a melhor forma em Accelerate. Separaram-se.

Dizem que não se reunem. Mas deixam um corpo de belas canções como poucas discografias o souberam fazer.