Figura ímpar da música popular do século XXI, herdeira directa da grande tradição soul, virtuosa do jazz vocal e R&B, Amy Winehouse foi encontrada morta, no dia 23 de Julho, na sua casa de Camden, Londres — nascida, também em Londres, na zona de Southgate, a 14 de Setembro de 1983, contava 27 anos.
Com uma existência marcada por muitos problemas de dependência de álcool e drogas, Amy tinha passado recentemente por mais um período de tratamento. Em Junho, na sequência de um concerto na Sérvia em que se apresentou fortemente alcoolizada, tinha sido cancelada a sua digressão europeia. O seu derradeiro aparecimento público ocorreu a 20 de Julho, no Festival iTunes, em Londres, ao lado de Dionne Bromfield, cantora soul de 15 anos (afilhada de Amy), interpretando uma versão de Mamma Said, das Shirelles [video da mesma canção no programa Strictly Come Dancing, da BBC, em 2009, primeira aparição televisiva de Dionne, com Amy no coro].
A sua última gravação editada foi It's My Party, clássico de Lesley Gore lançado em 1963, com produção de Quincy Jones — o registo [som a seguir] integrava o álbum Q Soul Bossa Nostra, um tributo ao próprio Jones, lançado em finais de 2010.
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Tentando descortinar as origens da sua musicalidade, as biografias de Amy Winehouse registam o facto de ter nascido numa família adepta das sonoridades do jazz. Isto somado a uma paixão precoce pela obra de Frank Sinatra (algumas crónicas referem que o seu irmão mais velho, Mitchell, lhe cantava as suas canções) e a uma obsessão pelos discos de Sarah Vaughan que terá ouvido infinitas vezes durante a adolescência. Além do mais, e mesmo através de um trajecto acidentado por várias escolas, foi praticando viola, experimentou o rap e teve formação teatral.
Ao estrear-se, em 2003, com o álbum Frank, a sua performance tinha muito pouco de principiante. Com um forte balanço jazzístico, temperado por um romanesco por vezes sarcástico, era uma prova de força criativa, com a maior parte dos temas compostos pela própria Amy. Stronger than Me, In My Bed e Fuck me Pumps [video] são exemplos notáveis de uma genuína arte narrativa: Amy foi também, foi mesmo sobretudo, uma contadora de histórias fascinada pelos contrastes e contradições do impulso amoroso.
Já com o seu nome consolidado no mercado da música popular, e também no seio de uma indústria que rapidamente reconheceu as suas potencialidades, lançou o seu segundo (e derradeiro) álbum de estúdio, Back to Black, em 2006. No pleno domínio das suas qualidades, com produção de Salaam Remi (que já a acompanhara em Frank) e Mark Ronson, Amy emergia como uma nova encarnação de um dos mais velhos paradoxos da pop: a cantora com vocação de diva que, ao mesmo tempo, canta a dimensão mais íntima da sua existência. Modelo dessa exposição: a canção Rehab [video], remetendo explicitamente para a sua dependência do álcool.
No limite mais sofrido de tal exposição, surge o tema Love Is a Losing Game (composto pela própria Amy), confissão fria, metódica e metodicamente cruel, descartando qualquer redenção pelo amor – por certo uma das mais admiráveis canções que o século XXI já produziu [video], visceralmente soul pela herança que a anima e também serenamente pop na sua imaculada transparência.
Back to Black acabaria por arrebatar nada mais nada menos que cinco Grammys, incluindo melhor álbum pop (vocal), melhor canção pop e melhor interpretação feminina pop (ambos por Rehab), prenunciando aquilo que parecia ser uma longa carreira internacional. Amy nunca desapareceu de cena e falou-se mesmo repetidas vezes da emergência de um terceiro álbum (para o qual terá começado a aprender a tocar bateria). O certo é que o seu estado de saúde se foi degradando, num ciclo de tratamentos, ausências e regressos que, não poucas vezes, foi vergonhosamente “retratado” pela imprensa tablóide inglesa. Reflexos disso mesmo poderão encontrar-se no excelente trabalho jornalístico da Rolling Stone sobre Amy, nomeadamente na reportagem 'The Diva & Her Demons', de Jenny Eliscu, publicada em 2007.
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Quando a maior parte dos discursos “jornalísticos”, com sempre triste destaque para as televisões, deixarem de reduzir a vida e a morte de Amy Winehouse a uma ilustração patética do “destino” (mas porque se julgam vocacionados para a gestão divina dos significados de tudo o que acontece no mundo?...), talvez seja possível relembrar que escutá-la continua a ser a melhor homenagem que podemos prestar à sua verdade artística – este é um registo da BBC, para as chamadas BBC Sessions, com a canção Valerie, originalmente da banda The Zutons: Amy gravou-a para o álbum Version (2007), de Mark Ronson, tendo surgido nesse mesmo ano numa edição especial de Back to Black.
>>> Obituário na BBC.
>>> Site oficial de Amy Winehouse.