quarta-feira, março 23, 2011

Arvo Pärt: pelos caminhos da Paixão


N.G.: É do silêncio que brota a música, a ela regressando inevitavelmente, como se de um incessante sem fim se tratasse. E foi entre silêncios que Arvo Pärt idealizou, em Passio, a sua visão para o texto da Paixão segundo São João. Uma das suas primeiras grandes obras corais criadas segundo o estilo tintinabuli (que, em traços largos, podemos descrever somo uma ideia que sugere o som distante de discretos sinos que há algum tempo deixaram de tocar mas ainda ecoam a reverberação) conheceu segura interpretação esta semana no Grande Auditório da Gulbenkian, contando com o Coro da Casa da Música, elementos do Remix Ensemble, as vozes solistas de Jakob Bloch Jespersen (notável) e Pedro Figueira, sob direcção de Paul Hillier.

O maestro, um dos mais aclamados “especialistas” na música de Pärt (com importante discografia já registada em torno de obras do compositor), entendeu precisamente a importância do silêncio e das suas periferias na condução da obra. Desenhada como se uma multidão de segmentos de recta cruzassem o espaço narrativo no qual acompanhamos cenas da paixão de Cristo, a música evolui por patamares de contida emotividade, o arrebatador crescendo final (que ecoa, depois da entrega do espírito, o pedido final de piedade) traduzindo um clímax de luz que rompe todo um percurso de dor que antes acompanhamos passo a passo, nota a nota, palavra a palavra. Magnífico!

J.L.: Como continuar a cantar a Paixão? Ou como garantir que a Paixão não abandone os encantos peculiares do canto? A obra de Arvo Pärt parece existir no cerne destas interrogações, dir-se-ia como quem distende até ao limite as suas possibilidades — e as possibilidades do seu fascínio. A saber: como preservar a singularidade das vozes, dos indivíduos que as sustentam, porventura da fé que as move? E ao mesmo tempo: como renovar o sentido de celebração colectiva do próprio acto de cantar? Talvez possamos descrever a Paixão, de Pärt, como essa obra de memória exausta, propriamente melancólica, de um tempo outro em que o ritual podia comprometer todos os sentidos deste mundo e os impossíveis de qualquer outro: afinal, somos religiosos apesar da não-religião do mundo. Porquê? Por certo porque a música não se submete à linearidade pragmática do presente. E insiste na hipótese do divino.

>>> GULBENKIAN, Grande Auditório: 21 de Março.