segunda-feira, dezembro 13, 2010

Da televisão como lojinha de horrores

PIETER BRUEGEL, O VELHO
O Triunfo da Morte
c. 1562

Na televisão fala-se mal, não por erro natural, mas por sistema. E quase já ninguém olha para nada... Este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 de Dezembro), com o título 'Lojinha de horrores'.

1. Nas televisões, já quase ninguém evoca o passado dizendo, por exemplo, “há dois dias...”. Mas também ninguém usa a alternativa “dois dias atrás...”. Agora, virou moda dizer “há dois dias atrás...”. O gongorismo da fala contaminou o quotidiano. Repare-se como, em poucos anos, o país inteiro deixou de saber dizer “à última hora...”, triunfando o horroroso linguajar do “à última da hora...”. Esta semana até apareceu, algures, nas legendas de uma série.

2. Há uns anos, as televisões tentaram impor a “colorização” dos filmes a preto e branco. Venderam-se milhares de televisores a cores, bombardeando os consumidores com a ideia de que o preto e branco, horroroso vício do cinema, era um sinal de pobreza expressiva. Será que tais consumidores nunca viram Casablanca? Em todo o caso, o episódio encerra uma lição pedagógica: nas televisões, onde a regra é dar a ver, predomina a inanidade do olhar. Só isso explica que num dos sectores fundamentais do audiovisual, o futebol, as entidades envolvidas (a começar pelos clubes) continuem sem corrigir o uso de equipamentos semelhantes pelas equipas em confronto. Veja-se a confusão televisiva que se estabelece quando as camisolas têm riscas, umas verticais, outras horizontais: aconteceu, recentemente, no Portimonense-Sporting (já tinha acontecido no Sporting-Porto). É bem certo que temos realizadores de jogos de futebol muito competentes. Mas temos também um sistema audiovisual que não sabe avaliar os efeitos mais básicos das suas próprias imagens.

3. Começamos a ficar fartos da “crise”. Da linguagem da “crise”, entenda-se. Massacram-nos com infinitas discussões sobre os horrores que nos esperam e ninguém, em nenhum debate, se atreve a falar de uma evidência que merecia ser questionada: no Natal publicitário, dos relógios aos automóveis de luxo, vivemos em clima de radiosa prosperidade e riqueza. Porque nunca se problematizam os valores que dominam as mensagens publicitárias? Porque não se pensam tais mensagens como elementos incontornáveis das relações sociais e simbólicas? Já ninguém tem gosto em olhar à sua volta?