quarta-feira, junho 02, 2010

A herança de William Lubtchansky

O nome de Willaim Lubtchansky está ligado a alguns momentos decisivos da história moderna do cinema europeu, incluindo a integração do video por Jean-Luc Godard [imagem em cima: France Tour Détour Deux Enfants, 1979] — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 de Maio).

No dia 4 de Maio, faleceu, em Paris, o francês William Lubtchansky. Contava 72 anos e foi um dos maiores directores de fotografia do cinema europeu. A primeira longa-metragem que fotografou, Les Créatures, de Agnès Varda, data de 1966. Trabalhou, entre outros, com Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Otar Iosseliani, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Teve uma incursão no cinema português, em 1993, quando assinou as imagens do filme Coitado do Jorge, de Jorge Silva Melo. A sua arte de lidar com a luz natural, trabalhando-a para além de qualquer naturalismo simplista, confere-lhe um lugar ímpar na história das formas cinematográficas, tão marcante como o contributo de um Rembrandt para a história da pintura.
Não foi uma morte que tenha desencadeado qualquer luto televisivo. Aceder aos espaços informativos (?) é algo que se tornou infinitamente mais fácil para uma vedeta de reality show, ou apenas para um banhista que tenha estado na iminência de ser arrastado por algumas ondas mais alterosas... Não que se desejasse que um artista como Lubtchansky fosse objecto da mesma pompa com que é tratado um qualquer símbolo do “jet set”, a proferir banalidades com um copo de whisky na mão... Seria, aliás, um desastre ainda maior. Mas num contexto em que continua a haver muito boa gente que acredita (sinceramente, não duvido) que a Europa se constrói através de grande debates televisivos, com muitos gritos e exaltação, o continuado silêncio sobre os artistas europeus é uma ferida que não sara.
Há uma dimensão reveladora na obra de Lubtchansky (com a palavra “reveladora” a adquirir uma saborosa duplicidade). Se é verdade que ele soube servir exemplarmente os universos dos autores com que filmou, não é menos verdade que o seu trabalho deixa uma subtil herança visual: a de alguém que pensou a luz, não como mero instrumento de “iluminação”, antes como elemento inerente à dimensão humana do cinema e, muito em particular, à intensidade dos corpos nas imagens.
Lembremos a frieza carnal dos corpos filmados por Rivette, fotografados por Lubtchansky, em A Bela Impertinente (1991) ou História de Marie e Julien (2003). Lembremos também o esplendor físico (apetece dizer: biológico) das imagens a preto e branco por ele registadas para Os Amantes Regulares (2004) e A Fronteira do Amanhecer (2008), ambos de Philippe Garrel. O que aí vemos decorre de um poder primitivo do cinema, por assim dizer anterior a qualquer discussão sobre o cinema como arte da “película” ou do “digital”. É o poder da imagem que, contra todas as evidências televisivas, nos garante que olhar o mundo à nossa volta não é uma mera reprodução seja do que for, mas um labor que convoca a responsabilidade dos olhares e exige a inteligência das formas. Decididamente, a “espontaneidade” que passou a dominar as tele-linguagens só pode ignorar Lubtchansky, se possível favorecendo o seu esquecimento.