domingo, maio 30, 2010

Em conversa: Pedro Amaral (3)

Continuamos a publicação integral de uma entrevista com o compositor Pedro Amaral a propósito da ópera O Sonho, que serviu de base ao artigo 'Dar corpo a um sonho pessoano' publicado no DN a 3 de Maio.

A música dramática quase desapareceu no século XX... Houve uma má relação com a ópera?
Mais que um má relação há um mal entendido. Quando se chegou ao final da primeira metade do século XX, ao pós-guerra, a Europa estava em absolutas ruínas. E uma parte do pensamento musical estava também ele em ruínas. A linguagem musical no final dos anos 40 estava altamente individualizada. A prática de Weber tem pouco a ver com a de Stravinsky ou Prokofiev. A linguahem está por um lado extremamente individualizada, e por outro não há uma linguagem completamente coerente e unificada em nenhum compositor. Cada compositor tem aspectos da sua linguagem extremamente modernos e partes da sua linguagem extremamente ligados à tonalidade. Stravinsky, por exemplo, continuava a usar alegremente as formas clássicas, como aliás Webern e Shoenberg. Porém, Webern organizava serialmente toda a sua sintaxe. E Stravinsky tinha uma desconstrução rítmica completamente moderna. Mas nenhuma dessas linguagens era unificada. E era por outro lado altamente individualizada. Colocando-me no lugar de um compositor jovem, com 20 anos, naquele pós guerra em que tudo está em ruínas (e também o pensamento musical), que fazer?

E a resposta…
Só há uma maneira: construir a sua própria linguagem. E foi o que fizeram em Darmstadt. Passou-se até ao fim dos anos 50 por uma fase de depuração de uma linguagem que tem o seu quê de artificial, um pouco como Brasília, que foi apresentada nos anos 50. Que se fez do nada. Eles pegaram, como num laboratório, no melhor de Stravinsky (na desconstrução rítmica), a serialização weberniana, na forma múltipa de Debussy... E construiram em laboratório a sua linguagem... Ora isso era incompatível com a elasticidade da linguagem necessária para uma cena dramática. Os compositores não fugiram da ópera. Não fugiram de todo... Não praticaram ópera nos anos 50 não por não gostarem de ópera, mas porque estavam tão ocupados a trabalhar a sua linguagem que isso era simplesmente incompatível com uma linguagem suficientemente maleável para produzir ópera. A prova é que, assim que chegou ao fim a constituição da linguagem serial, nos anos 58/59, logo a seguir alguns compositores começaram imediatamente a trabalhar uma música dramática. É o caso de Luigi Nono, com o Intoleranza. O Luciano Berio, com uma peça electrónica concreta a partir da voz, com um texto com palavras que não existem. Mais tarde o Ligheti. O Stockausen logo a seguir a compor a sua obra mais serial delas todas, o Kontakte. E logo a seguir faz uma adaptação daquela música para o teatro. Logo, a tentação do teatro está lá. Não é um abandono. Por outro lado o teatro necessita de uma linguagem definida. Coerente e lógica e extremamente maleável.

Neste início de século está a haver uma produção intensa de ópera. É novamente um espaço musical que desafia o compositor?
Absolutamente! É um espaço absolutamente fascinante e de desafio para o compositor. Mas só podemos fazer isso porque, nas várias linguagens que praticamos, temo-las suficientemente estáveis para podermos operá-las, para operar um drama a partir delas. Quando é que Stockausen se lança realmente na ópera? É quando, primeiro, tem uma década de absoluta estabilização da linguagem, nos anos 50. Depois tem outra de completa experimentação acústica e formal. Depois ele pode reunir estas duas coisas. O rigor do serialismo (embora a chamar nomes diferentes, não série mas fórmula)... Vai pegar no elemento base da sua linguagem estável serial. E vai preparar esse rigor absoluto sintático com esta liberdade entretanto conquistada nos anos 60. E aí tem uma linguagem sufuicientemente maleável para fazer uma ópera. E produz logo sete de seguida. No minimalismo, o Einstein On The Beach é possível, como outras de Philip Glass, porque o minimalismo era uma linguagem completamente estabilizada. Numa linguagem que não o seja é muito difícil encontrar maleabilidade suficiente para compror música dramática.
(continua)