sexta-feira, abril 02, 2010

O sonho, aliás, o real

Uma fascinante exposição para reavaliarmos o que é um objecto artístico, o que é (ou pode ser) uma relação humana — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 de Março), com o título 'Entre sonhos de Joana Vasconcelos'.

Entra-se na fascinante exposição “Sem Rede”, de Joana Vasconcelos (Museu Berardo, até 18 de Maio), através de uma das suas peças. E a palavra através é para ser tomada à letra: chama-se Contaminação (2008-2010) e apresenta-se como um gigantesco labirinto de formas bordadas, cosidas e enredadas uma nas outras, gerando um envolvimento que desafia, de uma só vez, o espaço de exposição e o próprio conceito de objecto artístico.
A sensação, misto de euforia e angústia, talvez se possa definir como o cruzamento (ou a contaminação, justamente) de duas ideias herdadas das convulsões do século XX: por um lado, pressentimos o jogo lúdico, mas também visceralmente trágico, dos cadavres exquis dos surrealistas, inventando objectos e sensações a partir da perversa contiguidade de todas as formas; por outro lado, vogamos num espaço de puro onirismo, enraizado numa noção aprendida em Sigmund Freud, ou seja, o sonho como realização de um desejo.
Que desejo(s), então, encontramos na obra de Joana Vasconcelos? Talvez possamos responder através de um paradoxo inerente à relação com o próprio sonho. Sobretudo se nos lembrarmos que, nos nossos dias, a cultura dominante (de raiz televisiva) tende a tratar o sonho como uma espécie de fuga para uma experiência “alternativa”, banalmente hedonista e... vazia. Ora, aqui, a experiência é tanto mais física e afectiva quanto o sonho desemboca... no real.
Joana Vasconcelos utiliza os materiais mais diversos e inesperados: plásticos, azulejos, espanadores, aspirinas, até mesmo panelas (numa das suas peças mais conhecidas: o sapato gigante, de 2007, intitulado Cinderela). Pelas formas insólitas da sua combinação, gera-se uma estranheza que nunca exclui, antes parece reforçar, os mais bizarros exercícios de reconhecimento. Afinal de contas, estes objectos não nos empurram para uma qualquer fuga “turística”, distante da verdade do quotidiano. Bem pelo contrário, com eles e através deles, revemo-nos na paisagem familiar desse mesmo quotidiano, agora com um inesperado saber: não precisamos de olhar à nossa volta como se cada coisa tivesse um lugar único e definitivo; podemos aceder ao desafio do sonho, não abdicando desse privilégio muito humano que é o livre exercício do olhar.
Escusado será dizer que esta é uma arte eminentemente política. Não porque seja estranha a uma fortíssima dimensão lúdica. Mas precisamente por causa dessa dimensão. A televisão e, em particular, a publicidade tentam convencer-nos que a “festa” corresponde a uma negação das experiências e das relações do dia a dia. O trabalho festivo de Joana Vasconcelos implica uma verdade básica, mas difícil: a de que nunca saímos da nossa dimensão humana. Demasiado humana, como dizia o outro. Mas isso é o preço a pagar pela coragem de manter os olhos bem abertos.

>>> Site oficial de Joana Vasconcelos.