terça-feira, abril 06, 2010

Madonna, os filhos e a televisão

STICKY & SWEET TOUR
S. Petersburgo (ensaios), 2 de Agosto de 2009

Há formas de jornalismo que aplicam a citação como um "filtro". Afinal de contas, como é que Madonna avalia a relação dos filhos com as imagens? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 de Abril), com o título 'O que Madonna pensa da televisão'.

Um dos mais agressivos lugares-comuns deste mundo de imagens em que vivemos consiste em dizer que alguém “vive da imagem”. Madonna, por exemplo. Já foi dito e redito que Madonna é alguém que tem trabalhado as imagens como matérias essenciais do seu universo artístico. Claro que sim: se mais nada existisse, os seus mais de sessenta telediscos bastariam para definir um espaço criativo de fascinante fulgor criativo e complexidade temática, em particular na reconversão simbólica do feminino (e das suas imagens, precisamente).
Acontece que “viver da imagem” é quase sempre aplicado de forma preconceituosa: primeiro, menosprezando tudo o que está envolvido na significação de qualquer imagem; depois, sugerindo que as imagens não passam de instrumentos “neutros” que circulam de forma “natural” (é por isso, claro, que quase ninguém se mostra disponível para discutir as componentes estéticas e ideológicas dos telejornais).
Madonna tem estado de novo em evidência nessa dança contraditória das imagens. Desde logo porque já está disponível o filme da sua digressão “Sticky & Sweet”, constituindo um acontecimento ímpar na área do DVD. Mas também porque acaba de lançar uma nova linha de roupa, desta vez em colaboração com a filha mais velha, Lourdes Maria (13 anos).
Surpreendentemente, muitas notícias sobre o evento (cujo lançamento oficial ocorreu no Macy’s, em Nova Iorque) tendem a rasurar o que Madonna disse sobre os filhos e, em particular, a sua relação com a televisão. Assim, em entrevista à Associated Press (repórter: Alicia Quarles), Madonna foi questionada sobre o cuidado em resguardar a filha de uma exposição mediática gratuita. Resposta: “É por isso que sou eu que estou a dar esta entrevista, e não ela.” Mais ainda, falando sobre as relações dos filhos com as imagens e, mais especificamente, com a televisão, acrescentou: “Tento conservar os meus filhos distantes de coisas que os impeçam de ser criativos. Penso que permitir-lhes passar um dia inteiro a ver televisão, ou a brincar com jogos de video, mata a criatividade e transforma-os em zombies.”
Poderia esperar-se que uma declaração tão cristalina e contundente, para mais proferida por uma figura pública tão universal, tivesse um pouco mais de evidência do que aquela que, por norma, é dada ao último disparate proferido por um qualquer clone de Paris Hilton... Mas não: ser figura pública pode implicar uma manipulação obscena das respectivas imagens, mas está longe de garantir um mínimo de respeito pelo seu próprio discurso. Aliás, reflectir sobre a visão de Madonna sobre a televisão seria tanto mais interessante quanto o seu império criativo, consolidado nas décadas de 1980/90, é indissociável da televisão e, em particular, da MTV. Porquê? Porque, em boa verdade, a MTV abandonou os seus valores originais, submetendo-se à mediocridade da reality TV. Madonna apenas permanece fiel a si própria.