domingo, abril 04, 2010

Dois tempos numa mesma sala

Foto: José Frade


Este texto foi publicado na edição de 3 de Abril do DN com o título ‘Ecos da Idade Média passaram por Lisboa numa noite do século XXI’

Editado em disco há cerca de um ano pela ECM, Being Dufay juntava o compositor britânico Ambrose Field ao seu compatriota John Potter, tenor, em volta de uma ideia que cruzava dois tempos distantes entre si. Em concreto, cruzavam-se ecos de música de meados do século XV a electrónicas dos nossos tempos. O mesmo disco foi entretanto ponto de partida para mais episódios de relacionamento entre a Idade Média e o mundo actual, entre a voz e as máquinas, entre a memória e o presente. Encontros que o compositor e o cantor têm levado a vários palcos, tendo passado esta quinta-feira por Lisboa, fazendo do Teatro Maria Matos o cenário para um diálogo único e inesquecível entre obras dos finais do século XV e um presente que se construía ali à frente de todos, segundo os comandos lançados pelos dedos de Ambrose Field.

Em cena viam-se um microfone, um computador portátil, uma mesa de mistura e um emaranhado de cabos e fios eléctricos. Mais atrás um ecrã, por onde se projectavam imagens criadas expressamente por Michael Lynch como reacção a esta música.Curvado sobre o teclado do pequeno computador, entregue aos cursores a ele ligados, Ambrose Field liberta sons, mistura-os no momento, sugerindo acontecimentos, como que discretamente construindo um primeiro cenário. A voz de John Potter junta-se logo depois, abordando peças tal e qual haviam sido criadas, há mais de 500 anos, por Guillaume Dufay. E destas evocações partem assim as sugestões para uma nova música que, apesar de ligada ao passado, nos transporta antes para domínios que sabemos ser apenas possíveis no século XXI.

Depois de lançados os dados, Ambrose Field eleva o que pareciam ser apenas cenários à condição de elementos de maior protagonismo numa música feita de acontecimentos inesperados, ruídos e texturas que assim tomam o espaço da sala, sem perder nunca o interesse pelos ecos captados na memória da música de Guillaume Dufay. Com a voz conhecedora de John Potter assumindo o papel de veículo entre os dois tempos que se juntavam assim num espaço comum, a música de Dufay cruza o tempo e emerge num contexto diferente. A abordagem vocal segue os caminhos definidos há mais de 500 anos. Mas a música de Ambrose Field que agora integra (e manipula) a voz garante que a viagem no tempo não conduz a memória de Dufay à contemplação, mas sim a um jogo de interacção com outras formas de uma outra época. A música é assim como um corpo vivo que se transforma e ganha novos sentidos entre novos contextos.