O mais famoso teledisco de Michael Jackson passou a fazer parte do arquivo da Biblioteca do Congresso dos EUA — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 de Janeiro), com o título 'Michael Jackson como valor patrimonial'.
Foi recentemente anunciada a integração de Thriller (1983), o teledisco de Michael Jackson, dirigido por John Landis, no arquivo cinematográfico da Biblioteca do Congresso dos EUA. É provável que muitos tenham interpretado tal decisão como uma “homenagem” motivada pela morte de Jackson em meados de 2009. Se assim foi, só podemos considerar o facto como sintoma de uma visão redutora do cinema americano e da gestão do seu património.
A escolha de Thriller para o National Film Registry está muito longe de ser um facto pontual explicável por eventos ocorridos nos últimos seis meses. Desde logo porque o teledisco de Jackson não foi a única obra seleccionada para esse departamento da Biblioteca do Congresso. Constituído em 1989, o National Film Registry tem por missão escolher, anualmente, 25 títulos considerados prioritários na preservação do património cinematográfico. Assim, Thriller integrava uma lista muito variada que incluía, por exemplo: Little Nemo (1911), de Winsor McCay, pioneiro da animação cinematográfica; O Sinal do Zorro (1940), de Rouben Mamoulian, clássico da aventura romântica com Tyrone Power, Linda Darnell e Basil Rathbone; The Lead Shoes (1949), filme experimental de Sidney Peterson; The Incredible Shrinking Man (1957), conto fantástico realizado por Jack Arnold, centrado num homem que, depois de exposto a radiações nucleares, vê o seu tamanho reduzido até dimensões microcópicas; e Um Dia de Cão (1975), espantoso thriller de Sidney Lumet com Al Pacino numa das suas mais sofisticadas composições.
Não se trata, entenda-se, de um sistema de selecção limitado pela oposição simplista entre os “melhores” e os “piores”. O National Film Registry tem por missão escolher filme produzidos há pelo menos dez anos, e que, como sublinhou James H. Billington, director da Biblioteca do Congresso, são encarados como “trabalhos de continuada importância para a cultura americana”. Mais ainda: a sua integração nos cofres daquele organismo não tem nada de passivo, uma vez que passam a estar disponíveis para visionamento gratuito no edifício da Biblioteca, em Capitol Hill.
Tudo isto decorre de um entendimento ágil do património (cinematográfico e não só) que está muito para além da consagração formal das obras preservadas. O património só existe como força criativa quando está a ser constantemente relançado, revisto e reavaliado no presente de cada geração. Além disso, os títulos agora anunciados (mais os 500 que foram integrados ao longo das últimas duas décadas) decorrem de um entendimento aberto e descomplexado do cinema, alheio a qualquer conflito estúpido entre filmes “sérios” e filmes de “entretenimento”.
Sabemos, como é óbvio, que o cinema americano possui gigantescos meios económicos e tecnológicos. Em todo o caso, tais meios não bastam para adoptar esta abertura de espírito. É preciso também a serena disponibilidade para não demonizar uma obra apenas porque há nela um gosto experimental mais ou menos esotérico ou, no pólo oposto, porque o seu triunfo ocorreu no grande mercado do entertainment. Michael Jackson é apenas um sinal de tão vasto programa cultural.
Foi recentemente anunciada a integração de Thriller (1983), o teledisco de Michael Jackson, dirigido por John Landis, no arquivo cinematográfico da Biblioteca do Congresso dos EUA. É provável que muitos tenham interpretado tal decisão como uma “homenagem” motivada pela morte de Jackson em meados de 2009. Se assim foi, só podemos considerar o facto como sintoma de uma visão redutora do cinema americano e da gestão do seu património.
A escolha de Thriller para o National Film Registry está muito longe de ser um facto pontual explicável por eventos ocorridos nos últimos seis meses. Desde logo porque o teledisco de Jackson não foi a única obra seleccionada para esse departamento da Biblioteca do Congresso. Constituído em 1989, o National Film Registry tem por missão escolher, anualmente, 25 títulos considerados prioritários na preservação do património cinematográfico. Assim, Thriller integrava uma lista muito variada que incluía, por exemplo: Little Nemo (1911), de Winsor McCay, pioneiro da animação cinematográfica; O Sinal do Zorro (1940), de Rouben Mamoulian, clássico da aventura romântica com Tyrone Power, Linda Darnell e Basil Rathbone; The Lead Shoes (1949), filme experimental de Sidney Peterson; The Incredible Shrinking Man (1957), conto fantástico realizado por Jack Arnold, centrado num homem que, depois de exposto a radiações nucleares, vê o seu tamanho reduzido até dimensões microcópicas; e Um Dia de Cão (1975), espantoso thriller de Sidney Lumet com Al Pacino numa das suas mais sofisticadas composições.
Não se trata, entenda-se, de um sistema de selecção limitado pela oposição simplista entre os “melhores” e os “piores”. O National Film Registry tem por missão escolher filme produzidos há pelo menos dez anos, e que, como sublinhou James H. Billington, director da Biblioteca do Congresso, são encarados como “trabalhos de continuada importância para a cultura americana”. Mais ainda: a sua integração nos cofres daquele organismo não tem nada de passivo, uma vez que passam a estar disponíveis para visionamento gratuito no edifício da Biblioteca, em Capitol Hill.
Tudo isto decorre de um entendimento ágil do património (cinematográfico e não só) que está muito para além da consagração formal das obras preservadas. O património só existe como força criativa quando está a ser constantemente relançado, revisto e reavaliado no presente de cada geração. Além disso, os títulos agora anunciados (mais os 500 que foram integrados ao longo das últimas duas décadas) decorrem de um entendimento aberto e descomplexado do cinema, alheio a qualquer conflito estúpido entre filmes “sérios” e filmes de “entretenimento”.
Sabemos, como é óbvio, que o cinema americano possui gigantescos meios económicos e tecnológicos. Em todo o caso, tais meios não bastam para adoptar esta abertura de espírito. É preciso também a serena disponibilidade para não demonizar uma obra apenas porque há nela um gosto experimental mais ou menos esotérico ou, no pólo oposto, porque o seu triunfo ocorreu no grande mercado do entertainment. Michael Jackson é apenas um sinal de tão vasto programa cultural.