sábado, novembro 14, 2009

Em conversa: António Pinho Vargas (4)

Quarta parte da apresentação de uma entrevista com António Pinho Vargas que serviu de base a uma entrevista publicada no DN a 26 de Outubro com o título ‘Um ciclo de álbuns que abriu novos caminhos’.

É possível manter vários caminhos numa mesma obra ao mesmo tempo? Mesmo tendo uma personalidade vincada?
Não se trata de dizer bem nem mal, mas é uma constatação de facto: quando saiu o Solo I pensei se haverá algum músico de jazz que tenha feito oito ou nove discos e composto quatro óperas? Portugal é um país pouco relevante no mundo em todos os pontos de vista, cultural inclusivamente... Culturalmente, e sobretudo entre diversos universos linguísticos, há grandes separações. O mundo anglo-saxónico é muito diferente do mundo da língua francesa, mesmo no campo da música contemporâneo onde partilham uma série de dados fundamentais de vocabulário. Ninguém compõe sem uma filosofia da história: o que é que é possível fazer hoje? Se lermos entrevistas de compositores nos anos 50 a 80, alguns falam pouco. Preferem fazer e não falar. Outros estabelecem um conjunto de princípios nos quais acreditam e que regulam o seu trabalho. Uma das coisas que fui fazer e que tem a ver com a minha experiência pessoal, e portanto biográfica, é que fui tomando conhecimento da diferença brutal de universos entre aquilo que significa ser um músico de jazz (compositor ou não) e aquilo que é, por hipótese, o universo de uma orquestra sinfónica.

E quais são essas diferenças?
Falámos há bocado das tribos, e eu muito cedo, e às vezes com enorme perplexidade e até sofrimento apercebi-me que estes universos tinham contactos não muito fáceis, particularmente nos seus núcleos duros. Tentei aprofundar esta ideia e percebi que, para trás, há histórias completamente diferentes. A música erudita pela música escrita, tem uma tradição. A aprendizagem realiza-se com professor de piano a ensinar a partitura de Beethoven e por aí fora. O músico de jazz aprende a ouvir discos. Pode actualmente já ler umas transcrições... Mas é uma música de tradição oral, pelos discos. Não é de pais para filhos, mas é como se fosse. Essa diferença, a própria maneira como isso é reconhecido pelo todo social – os sítios onde se toca não são os mesmos, os críticos nos jornais não são os mesmos... Essas diferenças são reconhecidas. Também aí há desconhecimento de tudo o resto. E há estereótipos que emergem num texto ou outro que vamos lendo por aí. Ou seja, é uma coisa que existe internamente nos próprios músicos, na maneira como a sociedade vê as diferentes músicas (o que se reproduz em praticas institucionais). No meu caso o ter tomado consciência disso provocou alguns momentos de paralisia. Eu parei de tocar durante sete anos e não foi por acaso. Tinha muito trabalho na composição. Já há uns anos que não gravava. E naquele momento senti que devia parar isto um bocado. Era uma pausa. E até podia ser uma pausa definitiva. O que acontece é que houve uma inquietação interior a pensar que eu tive esta vida 20 anos, não tem sentido imaginar que isto não existiu, porque seria absurdo. Eu sou isto, também! A inversão fundamental foi deixar de considerar a heteronímia “eu tenho duas formações musicais em paralelo” agir como um problema. E começar a funcionar como essas duas formações sendo um privilégio.

O díptico Solo não é já fruto do reconhecer desse privilégio?
Sem dúvida! Eu sei que não tocaria a minha música da mesma maneira se não tivesse passado pelo que passei.

Nem há 20 anos teria sido tocada desta maneira...
De maneira nenhuma! Descobri novos interesses. Em algumas das minhas peças há coisas de piano que estão num registo extremo... Num terreno uso o que descobri no outro campo.

A história do jazz e da música clássica tem pontos de aproximação e de divergência. Mas são sempre momentos difíceis?
E quando o músico jazz invade o chamado território privado da música erudita, que é o que se passa quando o Keith Jarrett toca Bach ou Shostakovich, a tendência é dizer porque é que ele faz aquelas coisas se há outros músicos que fazem aquilo melhor... Não é verdade! O Keith Jarrett toca maravilhosamente os Prelúdios e Fugas de Shostakovich. Há pouco tempo tempo o meu amigo Miguel Henriques [pianista] dizia-me que o Keith Jarrett é muito melhor que o Ashkenazy a fazer os Prelúdios e Fugas de Shostakovich. Ninguém do núcleo duro da música clássica poderia admitir esta ideia como plausível. É que o Keith Jarrett é um grande pianista, ponto! E por isso, se nós pensarmos o que é o repertório de um pianista. Geralmente é um repertório relativamente estreito... Tipo Schubert, Beethoven... Pensemos em Brendel... Depois há outros. O Pollini tem certas coisas e depois um pé no século XX, vai tocando Luigi Nono. O Glenn Gould nunca tocava musica romântica nem impressionista. Cada um faz as suas escolhas. O Keith Jarrett durante um certo período da sua vida gravou as Variações Goldberg e os Prelúduios e Fugas de Bach. Gravou o Shostakovich. Coisas que levam anos de vida a preparar. Que muitos músicos clássicos não tiveram a capacidade nem o interesse de fazer. Só isso revela até que ponto vai a capacidade extraordinária daquele homem, independentemente de se gostar depois ou não da sua interpretação. Eu disse que o Shostakovich é uma interpretação excepcional. E comparei com a interpretação da Tatiana Nicolaieva, que era amiga do Shoatakovich. É um disco que quase não se consegue encontrar. Era a interpretação de referência. E há coisas que o Keith Jarrett toca de uma forma, para mim e para outros, melhor que ela. Aquilo está num mesmo patamar. Simplesmente ele vem de outra tribo. Ao vir de outra tribo a desconfiança surge.

É uma desconfiança diferente da que certamente poderá existir se ouvirmos as mesmas Variações Goldberg, mas por um Uri Caine...
É completamente diferente. Ele não permite que haja a perplexidade... Ele destrói o objecto. Ele mostra que está a fazer qualquer coisa de pós-moderno, que é pegar no objecto conhecido, reconhecível, e refaze-lo de alto a baixo. Brinca com ele... Play with... Aí não há nenhum problema. O Pedro Burmester disse-me que aquilo tinha piada. Ele é daquela tribo mas também tem a sua inquietação identitária, eu diria, pelo que não se reconhece exclusivamente naquele universo. E por isso é que às vezes toca com o Mário Laginha. Mas normalmente não há essa inquietação identitária. Um pianista português no mesmo patamar, por exemplo, o Artur Pizarro, não quer saber do Uri Caine para nada e está no seu direito. Um tipo pode ter inquietude ou aceitar os limites do campo onde quer trabalhar. As duas atitudes são legítimas. Eu partilho uma atitude de inquietação mas mesmo assim não tento a tal fusão a não ser, neste momento, no meu acto de tocar. Porque aí sou livre. Mas sei que não posso por uma orquestra sinfónica a tocar com swing, porque é um contrasenso civilizacional. É preciso filtrar qualquer coisa. Há zonas onde às vezes há resultados surpreendentes, de interesse, de inovação, de descoberta de mundos inexistentes. Mas normalmente são feitos nos termos daquele Ambrose Field... Ele se calhar trabalha com poucos meios... Se pegarmos numa orquestra sinfónica, o peso institucional da coisa, a própria formação dos músicos e o seu universo cultural, que é legítimo como digo, iria tornar muito difícil aquilo. E por isso casos internos da música contemporânea como o Stockhausen e dos músicos que o acompanharam, o Steve Reich e o seu grupo de músicos... Até mesmo esses, que à partida são aceites no seu campo, preferem trabalhar com um grupo restrito de pessoas, que trabalhar na grande instituição que, em última análise, é uma instituição do final do século XIX, que é uma grande orquestra sinfónica. É um peso tremendo. As grandes inovações têm mais lugar na pequena intervenção, no grupo de pessoas que trabalham em conjunto. Então eu, a tocar sozinho, deixei-me livre.
(continua)