terça-feira, janeiro 27, 2009

A velocidade segundo os Wachowski

Será que Speed Racer, dos irmãos Wachowski, tem um lugar na história do cinema deste nosso século XXI? Acreditamos que sim. Acreditamos, sobretudo, que vale a pena combater a quase indiferença com que foi recebido e pensado. Estes textos foram publicados no Diário de Notícias (18 de Janeiro).

N. G.: Foi um dos campeões em críticas negativas de 2008. De resto, poucos títulos estreados no ano passado foram tão sovados como Speed Racer... E contra quem pensa que má crítica dá boas vendas, o filme ficou igualmente muito aquém dos resultados esperados na bilheteira, acabando inclusivamente como um dos flops do ano... Mas em Dezembro a revista Time apontava-o entre os acontecimentos cinematográficos do ano. O filme que dividiu opiniões (mais as más que as boas, é verdade), chega agora ao DVD. Terá mais sorte desta vez?
Pelas mais variadas razões era uma das estreias mais aguardadas do ano passado. Por um lado representava a primeira realização assinada pelos irmãos Andy e Larry Wachowski, os criadores da trilogia Matrix, desde a terceira e última parte dessa aventura que marcou a história do cinema da presente década. Não menos importante era a expectativa perante a anunciada utilização de uma nova tecnologia, que permite a composição de imagens por camadas. Um método que, contra a lógica tradicional no cinema de imagem real, possibilita a existência de vários planos de focagem em simultâneo.
Baseado em Mach GoGoGo, uma manga japonesa impressa nos finais dos anos 50, adaptada a série televisiva já nos anos 60, Speed Racer não esconde a sua génese. E vinca, pela presença marcada da cor e de uma identidade gráfica imponente, um sentido de fantasia mais próximo dos universos da animação. Os irmãos Wachowski pretenderam contudo sublinhar a identidade de pele e osso das personagens. E procuraram manter viva essa face mais próxima do real usando um elenco com figuras de peso em que se destacam Emile Hirsch, Christina Ricci, Susan Sarandon e John Goodman.
Speed Racer, abordado com temperos de "filme de família", é uma história em volta de corridas de carros. O protagonista, Speed (Emile Hirsch), é o irmão do meio de uma família com tradição nas corridas. E, reconhecendo não saber fazer mais nada, vive de prego a fundo no acelerador... Entre as suas metas: ganhar, claro... Mas também honrar o irmão mais velho. Um irmão desaparecido. O seu ídolo.

J. L.: A história do cinema está recheada de filmes que existem, dramaticamente, por vezes ironicamente, fora do seu tempo. Afinal de contas, foram precisas algumas décadas para que o genial sentido de experimentação de O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, lhe conferisse o estatuto de clássico que hoje ninguém contesta. O paradoxo de Speed Racer decorre de algo bem diferente: aqui está um filme que, quase por toda a parte, suscita indiferença e irritação, ao mesmo tempo que tudo nele decorre de uma muito directa e muito consciente integração nas grandes questões cinematográficas (e cinéfilas) do presente.
Consideremos, por exemplo, os efeitos especiais como génese de novos conceitos de espaço, tempo e narrativa: Speed Racer diz que sim a tudo isso e mostra que o leque de possibilidades é muitíssimo mais vasto do que alguma vez pudemos supor. Lembremos a dúvida sobre a relação do trabalho dos actores com esses mesmos efeitos: Speed Racer desmonta todos os preconceitos e valoriza esse trabalho sem lhes sobrepor os valores virtuais da sua figuração. Enfim, que dizer das possíveis relações da narrativa cinematográfica com registos tão diversos como a animação, os telediscos e a banda desenhada? Speed Racer é uma apoteótica integração de tudo isso, fazendo-nos sentir numa paisagem em que as memórias primitivas de Méliès se cruzam, alegremente, com as mais insólitas experiências que podemos descobrir na Internet.
O filme consegue, assim, essa coisa espantosa que é possuir uma evidente carga de futuro, ao mesmo tempo que mantém uma relação rica e descomplexada com as mais antigas referências culturais. Noutros tempos, chamava-se a isso ser vanguardista. Mas a palavra caíu em desuso e a culpa não é, por certo, dos Wachowski.