quinta-feira, novembro 20, 2008

Em conversa: Carlos do Carmo (2/5)

Continuamos a publicação da versão integral de uma entrevista com Carlos do Carmo publicada no DN a 17 de Novembro, data que assinala o lançamento da antologia “Fado Maestro”, que celebra os seus 45 anos de carreira.

De certa maneira veste a tradição do homem que trabalha de dia e canta o fado à noite [ver post de ontem] quando está no Faia, nos anos 60. É gestor de dia e canta de noite...
De fatinho e gravata, à meia-noite, em cima do palco a cantar, às vezes podre de cansado.

O fadista nasce aí?
No dia a dia... De noite, a apanhar com o fumo das pessoas. O silêncio das casas de fado... O cantar para duas pessoas. E isso foi inesquecível. Numa noite a casa estava já perto de fechar, aí pelas duas e meia, três da manhã. E entra um casal simpatiquíssimo. Olham para mim e dizem-me que tinham acabado de chegar de Trás os Montes... Não iam poder estar em Lisboa no dia seguinte e pediram que cantasse para eles... E cantei. Para quem já cantou para 50 mil digo que cantar para dois é fantástico. As casas de fado podem ser como uma oficina...

As casas de fado ainda hoje são uma oficina para as novas vozes?
Sou suspeito para falar porque sou pouco frequentador.

O canto para si como profissional surge para sim como uma extensão do trabalho do gestor da casa de fados...
Completamente.

O que o fez depois pensar que a voz que já cantava na casa de fados poderia ir mais longe?
A rádio. Os poucos discos que fiz ao princípio tocaram muito na rádio. E as pessoas gostavam e iam à procura do tal rapaz que se chamava Carlos do Carmo e que era filho da Lucília do Carmo. Vamos lá ouvir o miúdo... Era o dois em um. Iam ouvir a mãe e, depois... a sobra. Tinha sua piada porque às tantas começou-se a cruzar os públicos. Era a gente da minha mãe e a dos vinte e poucos anos, que era uma geração que eu formei para o fado, que me diziam coisas maravilhosas, que a minha mãe cantava muito bem... E aos poucos os mais velhotes generosamente iam cedendo, lembrando que o rapaz tinha jeito, mas ainda tinha muito que aprender... Com o tempo começaram a ver que eu não imitava a minha mãe. Tinha essa preocupação. Começaram a sentir as diferenças. E a achar graça.

São de facto diferentes a sua maneira de estar no fado e a da sua mãe. Como viu a mãe o filho a ganhar uma identidade própria?
Muito bem... Às vezes de uma forma um pouco conservadora. Mas quem lhe dava na cabeça, curiosamente, era o Marceneiro. Dizia-lhe, Ó Lucília, isto que estás a falar já nós fizemos. Então queres que o miúdo faça outra vez o mesmo? Deixa-o fazer as coisas dele... E então como era o Marceneiro que dizia...

E ela comentava o que fazia?
Não interferia. Mas eu fiquei com o hábito do meu pai. Numa noite em que gostasse menos do que tinha feito, chegava ao pé dela e falava-lhe. “Hoje enganaste o pessoal”... Dizia-me que lhe doía aqui ou ali, mas depois, muito honestamente, dizia que hoje não estava com vontade... Porque é preciso ver que uma pessoa que está num local onde canta todos os dias, esta coisa é verdade... Há aquela imagem dos três lados: o tipo que toca, o que canta e o público. Se um destes lados do triângulo falha ou está fragilizado, o fado não acontece.

E consegue-se conviver bem com estas falhas?
El pueblo se habitua, como dizem os latino-americanos...
(continua amanhã)