domingo, junho 01, 2008

O regresso à vida

A interpretação (e eventual gravação) de obras deixadas incompletas levanta um dos debates éticos mais antigos, e nunca possíveis de doutrinar, da história da música. A décima sinfonia de Gustav Mahler (1860-1911), da qual o compositor deixou apenas um andamento escrito, os restantes quatro na forma de esboço, levanta aceso debate desde a sua morte. Maestros como Bernstein, Solti ou Haitink recusaram-se a considerar como válidas as várias versões propostas para uma “sinfonia completa” a partir dos esboços de Mahler, admitindo apenas interpretar e, por vezes, gravar o longo adágio que supostamente seria o primeiro andamento da sinfonia. Longe de unânime, a versão proposta em 1964 pela equipa do musicólogo britânico Deryck Cooke (que sofreu depois acertos até à forma “final” apresentada em 1980) encara a décima de Malher não com o intuito de a completar, mas apenas de tornar interpretáveis por uma orquestra os esboços deixados. Uma versão “performativa” e não “completa”, portanto. Várias actualizações desta cuidada tentativa de orquestrar os esboços incompletos conheceu já diversas gravações, algumas por nomes de primeiro plano como James Levine, Ricardo Chailly ou Sir Simon Rattle. O jovem inglês Daniel Harding, aos 32 anos, é o mais recente aventureiro a desafiar o legado da que teria sido, certamente, uma das mais assombrosas obras de Mahler. As notas lançadas sobre as partituras, há 98 anos, traduziam uma vontade de vencer o desânimo que se abatera sobre a vida de Mahler nos últimos anos, clima em grande parte instalado pela descoberta de uma relação da sua mulher com o arquitecto Walter Gropius. Esta seria, segundo sugerem as notas que acompanham a nova gravação, uma sinfonia de regresso à vida. A abordagem de Harding e da Filarmónica de Viena celebra esse reencontro em Mahler. E dá razão ao maestro quando este confronta o velho mito que defende que as obras tardias de certos compositores deveriam ser apenas confiadas a veteranos, lembrando que as últimas composições de Mahler são mais sobre a vida que sobre a morte. A gravação que a Deutsche Grammophon acaba de editar não o contradiz. Pelo contrário!