segunda-feira, maio 21, 2007

Postal de Cannes, 21 de Maio de 2007

A imagem de Gabe Nevins faz lembrar Elephant, de Gus Van Sant (Palma de Ouro de 2003). E não é por acaso: o novo filme de Van Sant, Paranoid Park, pode ser visto como uma sequela temática e formal do dispositivo de Elephant, prolongando a visão (des)assombrada do mundo dos jovens americanos. É, muito simplesmente, um dos acontecimentos maiores desta 60ª edição do Festival de Cannes — um filme que demonstra que o realismo mais estrito se faz também com o radicalismo de uma dimensão poética que, estranhamente ou não, nos devolve a realidade, intensificando o nosso olhar.
Van Sant filma a história (mas ainda será aquilo que, tradicionalmente, designamos como "história"?) de um jovem envolvido numa tragédia mortal. Filma, acima de tudo, o processo de apagamento a que ele procura sujeitar a própria memória do que viveu. E isso leva-o (e leva-nos) a um confronto cruel: afinal, o mundo à sua volta carece de coerência, nitidez e até de quem diga e administre os seus significados — como numa assombrada versão dos clássicos Peanuts, os pais sao espectros mais ou menos distantes que se reduziram a presenças sem peso simbólico. Provavelmente, em muitos casos, Paranoid Park será visto sobretudo como um "prolongamento" de Elephant. Claro que o é. Mas seria uma pena que o sentido de pesquisa formal & humana do cinema de Van Sant fosse banalizado apenas porque ele se mantém fiel a si próprio.
Quem não se mantém fiel a coisa nenhuma é Quentin Tarantino. O seu Death Proof (saído de Grindhouse, um filme duplo, com Robert Rodriguez, que funcionou mal nas salas dos EUA) representa a perda irreparável de tudo aquilo que fazia a emoção de Cães Danados e Pulp Fiction (outra Palma de Ouro, em 1994). Que é como quem diz: a prática da citação do cinema trash em que se formou o seu olhar — prática que desembocava num processo exuberante de reinvenção temática e narrativa —, reduz-se, agora, a um pastiche em que o espalhafato se esgota no mais patético gratuito. É uma tristeza ver uma das referências da história moderna de Cannes reduzir-se, assim, a uma caricatura grosseira do seu próprio talento.