domingo, outubro 15, 2006

O último a sair desliga o amplificador

Ponto final. O mais mítico clube de rock da cidade de Nova Iorque, palco pequeno do qual nasceram grandes nomes entre os quais os Ramones, Blondie, Patti Smith, Talking Heads ou Television, fecha hoje definitivamente as suas portas. O fim-de-semana de despedida foi contudo, de festa, devolvendo ao clube dois dos nomes de dali sairam para viver carreiras globais. Blondie no sábado. Patti Smith no domingo. Depois, e até 31 de Outubro, data em que Hilly Krystal, o fundador do clube (em 1973), terá de entregar as chaves ao senhorio, a hora será de mudança. Bar, palco e casas de banho serão desmontadas. Para brevemente reaparecerem em segunda vida em Las Vegas, onde um “novo” CBGB deverá surgir, em data por revelar. As razões por trás desta indefinição, bem como da inexistência de uma decisão sobre um eventual futuro num outro local em Manhattan prendem-se com o delicado estado de saúde de Hilly Krystal, a quem um tumor foi diagnosticado recentemente.
Em Nova Iorque ficará, contudo, uma loja de merchandise (que até aqui se vendia na porta ao lado, o CB’s Gallery). A nova loja CBGB Fashions, abre a 1 de Novembro na Broadway, no cruzamento com a Bond Street. ~


Tempo, então, para uma derradeira visita. Entramos num pequeno vestibulo, à direita duas secretárias (a da frente a de Hilly Krystal) cada qual de computador instalado, um pequeno televisor a meia altura numa das paredes. Papelada, muita. E logo ali as paredes cobertas de flyers, autocolantes e graffitis, uns sobre os outros, amontoado de caos de nomes de bandas e logotipos que contam histórias de música que por ali passou. Uma estreita passagem do lado esquerdo do vestíbulo dá então acesso à sala principal. Bar do lado direito, longo, estrutura de madeira, apinhado de gente toda a noite. Do lado esquerdo, degraus para uma plataforma elevada, cadeiras e mesas em conversas possíveis quando a música fala mais baixo. Por todo o lado, mais intensa que no vestíbulo, a colagem de velhos flyers e graffitis conta histórias e dá personalidade à casa que, na essência, lembra um Johnny Guitar um pouco mais comprido. Ao fundo, um palco de tábuas poucos centímetros do chão, uma proximidade inevitável entre quem toca e quem vê. Uma bateria, microfones, colunas penduradas a meia altura nas paredes, outras levantando-se do chão. Palco pequeno, de facto, pouco espaço para movimentos, mas muita história e vida ali feita. Ao lado, as históricas casas de banho, decadência em regime de sujidade rock’n’roll, tão mítica que foi já citada em canções e relatada em entrevistas.
É este o CBGB, casa de referência na alma de Nova Iorque, maternidade do punk rock, paragem incontornável em qualquer romaria à baixa de Manhattan. E raros devem ser os turistas, com rock’n’roll na guelra, que de passagem pela cidade, não tenham tirado a foto “à Ramones” frente ao número 315 da Bowery, com visita também certa, na porta ao lado, ao CB’s Gallery, bar diurno e galeria de arte onde também se vende o merchandise oficial CBGB. Uma foto que dentro de um 15 dias terá o sabor a relíquia como as que, outros, tenham, eventualmente tirado junto do velho Marquee londrino ou do Rock Rendez Vous lisboeta...

Patti Smith, Talking Heads, Ramones, Blondie, Television, Suicide, Richard Hell... Todos eles nasceram publicamente naquele pequeno palco. No mesmo clube que, há um ano, viu chegar ao fim o contrato de aluguer do espaço que ocupa no número 315 da Bowery, sem sinal de vontade do senhorio (o Bowery Resident’s Comitee) em renovar o acordo, dado o acumular de três anos de renda por pagar. Nova Iorque perde definitivamente um espaço de referência, apontado até pela Municipal Arts Society como candidato a um processo de inscrição como património da cidade, paredes “imundas” tidas como marcas da vivência cultural que ali se respirou desde os anos 70. No seu site , a associação chegou mesmo a comparar a importância histórica e cultural do CBGB ao histórico Plaza Hotel, na esquina da 5ª Avenida com o Central Park.
Começou então a falar-se dos interesses de um investidor no Nevada. Mais tarde, até foi noticiada eventual hipótese londrina... Kristal, todavia, defendeu sempre, e com paixão, a prioridade de uma solução em Nova Iorque, pedindo a renovação do contrato de arrendamento por mais 12 anos e uma mais atenta dedicação do senhorio ao edifício. Consciente da importância do clube como ícone cultural de Nova Iorque e como destino turístico, Kristal apostou numa pronta acção da cidade e dos vizinhos no Lower East Side para que o histórico clube não se transforme numa memória. Numa carta aberta à cidade e aos seus responsáveis, explicou em 2005 que a situação do clube não estava em negociação. Estava, sim, nas mãos de um juiz que tomaria a decisão sobre o seu eventual futuro como parte da vida cultural da zona Sul de Manhattan. E pedia a cada “amigo” que enviasse um email “educado” ao mayor Bloomberg, desafiando-o a confessar se estaria preparado para dizer que o clube poderia ser fechado “porque não pode pagar uma renda de 40 a 50 mil dólares por mês a uma associação sem fins lucrativos que é financeiramente apoiada pela cidade, estado e governo federal, com cerca de 23 milhões de dólares por ano”.

O dono do clube dizia então em entrevistas e noticiários que se recusava a abandonar o local. Continuou a agendar espectáculos para as semanas seguintes e pediu uma reunião com Michael Bloomberg, na sequência deste último ter a dada altura expressado o seu interesse pelo caso, com vontade em mediar o diferendo, e declarando que o clube é “uma grande instituição de Nova Iorque” e que “faz parte da nossa cultura”.
No site oficial do clube foi aberta então uma zona dedicada à campanha “Save CBGB” na qual se apresentaram textos explicativos, petições online e acções concretas. Um dos textos vincava precisamente o carácter não lucrativo da associação que alugava o espaço ao clube, e afirma que “o Bowery Resident’s Comitee é uma associação de caridade não lucrativa quase exclusivamente apoiada pela cidade e estado, e seria inapropriado ver o dinheiro dos contribuintes ser usado para apagar este importante marco nova-iorquino”.
Uma série de concertos destinados a recolher fundos ocuparam a sala em muitas noites do Verão do ano passado. E a 31 de Agosto de 2005 data-limite para a decisão do tribunal, uma série de bandas juntou-se na não muito distante Washington Square, largo de importância histórica na vida boémia do Village e sede de concertos históricos na década de 60. Chegou também a correr o rumor de um eventual concerto de recolha de fundos com elementos dos Ramones, prontamente desmentido pelos próprios. Entre as muitas mais acções então pensadas para divulgar a situação do clube e a lutar pela sua sobrevivência contou-se a edição, em Junho do ano passado uma fotobiografia do CBGB com introdução assinada por Hilly Kristal e com um texto da autoria de David Byrne.



PS. Colagem, editada, de textos originalmente publicados no DN.

As fotos do CBGB usadas neste post não podem ser reproduzidas sem autorização

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