domingo, outubro 01, 2006

Elogio da nudez

HELMUT NEWTON
Self-portrait with wife and model
(Vogue Studio, Paris, 1981)
1. Pensar. Um dos sintomas do terrível — sublinho: terrível — poder normativo que as televisões passaram a ter na nossa vida (em todos os aspectos da nossa vida) decorre do simples facto de sermos conduzidos a pensar, não apenas os temas que elas nos lançam, mas também em função dos dispositivos ideológicos que as suas máquinas nos impõem.

2. Sexo. Actualmente, o país está invadido por um desses pueris debates que as televisões relançaram: o de se saber que nudez é “legítimo” ou “ilegítimo” apresentar numa ficção televisiva. De súbito, vivemos alegremente recolocados no tempo ideológico da primavera marcelista e há muito boa gente de diversos quadrantes (incluindo, claro, o jornalismo mais voluntarista) que, com sinceridade e dedicação, julga estar a contribuir, assim, para o profilático esclarecimento das “massas”. Pior um pouco: todo o debate se situa num imaginário anterior a Sigmund Freud (1856-1939) em que — comovente infantilismo... — se confunde a amostragem da nudez com a abordagem da sexualidade.

3. Cultura. Como sempre, o que assim se recalca é a cultura financeira a que obedecem as práticas televisivas (incluindo, claro, a que continua a ser sustentada pela muito desportiva, acomodada e renunciante televisão pública que temos). A redução do exercício televisivo a padrões de medida “abstractos” — as inquestionáveis audiências — continua a aplicar-se com dois fins visceralmente ideológicos: primeiro, tal redução impõe um visão do mundo em que o valor do dinheiro se sobrepõe a qualquer das formas, representações e ficções que por ele (o próprio dinheiro) são induzidas no mercado de trabalho; segundo, promove a ideia obscura, historicamente insustentável, segundo a qual a noção de “maioria” equivale a uma “verdade” que ninguém teria autoridade para contestar — deste modo, de uma só vez, relançam-se os valores dominantes da economia e censura-se toda e qualquer reflexão que não aceite submeter-se ao maniqueísmo moralista destes padrões.

4. Imagem. A situação recoloca um velho problema a quem não tenha desistido de problematizar tais questões. Isto porque qualquer interrogação ou dúvida que se tente lançar à margem deste dispositivo de (anti-)pensamento tende a ser agredida com duas ancestrais acusações: o suposto alheamento do “gosto popular” e, pior do que isso, a vontade de impor alguma espécie de “dirigismo” cultural. Talvez valha a pena, por isso mesmo, dizer serenamente aos ideólogos da televisão que temos que a “questão do nu” não existe tal como eles a formulam e que, ao fazê-lo, apenas estão a tentar escamotear os valores económico-financeiros que os fazem mover. Mais do que isso: o “nu” como género universal não existe. O que existe é a responsabilidade intrínseca de qualquer imagem, mesmo que nela figure o corpo mais indecifrável ou oculto.

5. Anjos. Continuamos a ter uma televisão genericamente submetida à estética do Big Brother. Nela se acredita — ou quer fazer acreditar — que uma imagem é apenas a “transcrição” de um real tido como necessariamente passivo e automaticamente transmissível. Enquanto se lança a poeira da “nudez & sexo” para o espaço social, o único efeito que se produz é o de uma generalizada des-responsabilização das imagens. Aos jornalistas televisivos — a começar pelos que trabalham na televisão pública — importa colocar novas perguntas. Por exemplo: como se sentem por cada imagem que colocam num telejornal? Ou ainda: por cada montagem de duas imagens (one+one), que sentidos desnudam e que sentidos ocultam? Para sustentar tal debate, se for necessário, será preciso termos a coragem de dizer que os anjos, afinal, também têm sexo.

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