sexta-feira, setembro 04, 2015

O risco segundo Cristina Ferreira

A. A propósito da capa do nº 7 da revista Cristina, com Joana Amaral Dias, ficamos a saber que a sua criadora, Cristina Ferreira, para além de esforçada princesa da felicidade televisiva, é também autora de uma elaborada filosofia sobre as fronteiras da expressão individual. Escreve ela: "Como é que os pares de Joana Amaral Dias reagirão ao facto de uma política surgir nua, grávida, na capa de uma revista? Em Portugal, esta situação é inédita. E, por isso mesmo, um risco."

B. Não é muito provável que os "pares de Joana Amaral Dias" tenham muito a dizer sobre o assunto, a não ser que alguém lhes coloque um microfone ameaçador à frente (método que, em qualquer caso, ninguém pratica nas televisões portuguesas). Seja como for, a acreditar no ineditismo da situação, Cristina Ferreira evoca várias importantes componentes identitárias — trabalhar em política, ser fotografada sem roupas, estar grávida e aparecer na capa de uma revista — para concluir que a soma de tudo isso é um "risco".
Infelizmente, tão fina argumentação peca por defeito, já que não esclarece qual o factor decisivo, capaz de justificar o reconhecimento da situação a que chama arriscada (não parecendo, em qualquer caso, que o risco conceptual provenha da circunstância de a pessoa fotografada surgir acompanhada por uma figura masculina). Será que o risco decorre apenas do facto de alguém estar na política como, aparentemente, acontece com milhares de outras pessoas? Ou o problema envolve a figuração da nudez, acontecimento raríssimo na história da humanidade e, como toda a gente sabe, desconhecido na idade da Internet? Estará em causa essa coisa bizarra que consiste em gerar um ser humano no ventre, fenómeno que a nossa memória colectiva tinha rasurado, maravilhados que estamos com as proezas da gestação in vitro? Ou será que Cristina Ferreira, evitando os equívocos da falsa modéstia, está apenas a querer dizer-nos que é um risco aparecer, não na capa de uma revista qualquer, mas na capa da sua revista? — eis um tema fracturante da sociedade portuguesa que, por certo, merecerá a devida avaliação por parte do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, et pour cause.

C. Em boa verdade, podemos supor que Cristina Ferreira está apenas, humildemente, a celebrar o seu esplendoroso projecto estético e ético, tão pedagogicamente apostado na inventariação dos riscos do seu tempo. Se a conjugação dos astros assim o permitir, talvez tudo possa vir a acontecer um pouco como na aventura temporal deste quadro de Pierre-Auguste Renoir, datado de 1883. Quase um século e meio depois, a senhora retratada ficou reduzida a uma comovente designação abstracta: Rapariga Sentada. O certo é que, fracos como somos, todos citamos religiosamente o referido Renoir, reconhecendo-o como membro de um panteão artístico que, num dos próximos séculos, integrará também o nome de Cristina Ferreira — quando já não for arriscado.

quinta-feira, setembro 03, 2015

Refugiados — a criança morta na praia

1. O jornal Le Monde chama-lhe "uma foto para abrir os olhos". E fá-lo pelas mais básicas razões humanitárias: nos seus indefesos 3 ou 4 anos de idade, o pequeno Aylan Kurdi é uma das vítimas mais expostas, porventura mais tragicamente simbólicas, do drama dos refugiados que está a assolar a Europa [actualizações na BBC]. Aliás, o respectivo editorial demarca-se mesmo de qualquer deriva gratuita: "Le Monde já publicou fotos de crianças mortas, nomeadamente quando do ataque químico contra um bairro de Damasco pela soldadesca de Bachar Al-Assad, em 2013. Não há, aqui, nenhum voyeurismo, nenhum sensacionalismo. Apenas a vontade de captar uma parte da realidade do momento"."

2. Justamente: não se trata de lançar qualquer sugestão de acusação contra quem mantém esta disponibilidade para reflectir sobre as questões deontológicas e sociais relacionadas com as imagens, sua produção e difusão. Multiplicaram-se, aliás, as chamadas de atenção para a dificuldade de estabelecer um padrão universal para a complexidade dos problemas que se colocam [no El Pais, por exemplo, faz-se mesmo um elucidativo balanço, titulando: "A foto da criança morta na praia divide a imprensa internacional"].

3. O que desconcerta é o facto de, com pendular regularidade, certas imagens serem convocadas para esta avaliação, com muitos argumentos (cuja seriedade não está em causa) a explicar "porque decidimos publicar" a foto em questão. Aliás, a reflexão parece resultar tanto da própria foto como do facto de todos os intervenientes saberem, ou pressentirem, que ela vai ser infinitamente reproduzida (tornando-se "viral", como diz a gíria cega da Internet).


4. Acontece que todos os dias coabitamos com práticas jornalísticas como a que podemos observar nesta edição de The Sun (Janeiro 2008, sobre a dependência de drogas de Amy Winehouse). Sublinho: todos os dias há por esse mundo fora uma imprensa que desqualifica a própria imprensa, alheando-se de qualquer centelha de humanismo — e não parece existir (aliás: não existe) a mais discreta reflexão sobre o efeito de tais práticas no mundo dos jornais, jornalistas e leitores, e também na dinâmica e nos valores do tecido social.

5. Subitamente, sentimos que Aylan Kurdi foi compulsivamente promovido à condição de protagonista de uma saga em que, no limite, apenas se discute o incómodo interior do próprio jornalismo que o elegeu como símbolo. Símbolo de quê? Não apenas da tragédia dos refugiados, mas dos próprios fantasmas conceptuais e éticos do trabalho jornalístico. Podemos, aliás, perguntar: porque é que não se discutem os mesmos temas de "legitimidade" figurativa a propósito de imagens como estas?


6. Serão tais imagens menos importantes, porventura dispensáveis porque de menor valor informativo? Pertencem a um admirável trabalho jornalístico de Paolo Pellegrin (fotos e videos) e Scott Anderson (texto), no New York Times, com o título 'Desperate Crossing'. Será que o horror do destino de Aylan Kurdi torna as fotografias de Pellegrin fracas? Ou descartáveis? Ou menos exigentes em relação à reflexão que, sobre elas, ou a partir delas, possamos desenvolver?

7. Entre os efeitos da agitação discursiva, especialmente televisiva, em torno da fotografia do cadáver de Aylan Kurdi, o mais desconcertante será: tudo se passa como se, pelo menos durante 24 horas, só existisse — ou só pudesse existir — uma única e solitária imagem no nosso mundo de imagens. Mais do que isso: conscientemente ou não, dir-se-ia que, hoje em dia, no espaço mediático-jornalístico, existe a vontade totalizante de colocar o mundo inteiro a ver o mesmo ao mesmo tempo. Lição das coisas: a maximização dos circuitos de difusão promove a minimização dos olhares.

quarta-feira, setembro 02, 2015

Andra Day por Spike Lee

Por vezes, há requebros na voz de Andra Day que fazem lembrar Amy Winehouse... Chega a ser assustador. Mas importa superar essa sensação, quando mais não seja porque seria injusto não reconhecer a Day a especificidade, intensidade e vibração de um genuíno talento. Estamos, de facto, perante a afirmação de uma personalidade de excepção no mundo da soul, intérprete e compositora — o seu álbum de estreia, Cheers to the Fall, define um universo muito próprio que, com admirável elegância, sabe transfigurar influências que vão desde a depuração emocional de uma Billie Holiday até à herança de certos ritmos da etiqueta Motown. Além do mais, o cartão de visita do disco é um brilhante teledisco, Forever Mine, pequena novela anti-romântica com assinatura de Spike Lee.

Elogio de T. S. Spivet (2/2)

Apesar de chegar às salas portuguesas quase dois anos passados sobre o seu lançamento em França, O Jovem Prodígio T. S. Spivet é um dos grandes acontecimentos do Verão cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Agosto), com o título 'A herança de Méliès'.

[ 1 ]

Numa persistente demonstração de ignorância, algum jornalismo cinematográfico (?) passou a classificar as aventuras de super-heróis, com mais ou menos objectos voadores, como filmes “de efeitos especiais”... Assim se rasura mais de um século de história das técnicas e narrativas cinematográficas — na verdade, em filmes rodados nos anos finais do séc. XIX, Georges Méliès (1861-1938) já sabia muito bem como desafiar as ilusões naturalistas da imagem em nome da fantasia e do maravilhoso.
Goste-se mais ou goste-se menos do trabalho de Jean-Pierre Jeunet (n. 1953), creio que faz sentido considerar que há nele uma disponibilidade para contrariar a pacatez do naturalismo que, a meu ver, ficou expressa com especial felicidade em títulos como Alien: O Regresso (1997) e O Fabuloso Destino de Amélie (2001). O caso de O Jovem Prodígio T. S. Spivet, porventura o seu filme mais belo, é tanto mais fascinante quanto a exaltação do imaginário infantil se apresenta, aqui, indissociável de uma sofisticação técnica capaz de se demarcar das convenções que têm alimentado muitos produtos típicos do mercado de Verão.
As atribulações da sua difusão (no caso português, estamos a descobri-lo quase dois anos após a estreia francesa) acabam por ser sintomáticas de um problema global dos mercados (e dos mercados globais). Assim, para além das suas muitas maravilhas, a aceleração digital desses mercados contribui, por vezes, para um estreitamento da oferta, vitimizando objectos admiráveis como O Jovem Prodígio T. S. Spivet, alheios à formatação que tem contaminado muito cinema “juvenil”. Dir-se-ia que as angústias vividas pelo pequeno T. S. Spivet passaram para o filme de Jeunet, reforçando a moral da história. A saber: é sempre perigoso usar a inteligência.

Ver + ouvir:
Ezra Furman, Lousy Connection



É uma das grandes surpresas do ano. Chama-se Ezra Furman e tem já vários discos lançados. Será que é com este Perpetual Motion People que o mundo dará por ele? Merecia.

Top 10: as melhores séries
clássicas de ficção-científica



Diferentes das produções mais recentes, muitas delas dominadas por efeitos gerados digitalmente e pensadas sob outras lógicas narrativas, a ficção científica pensada para o pequeno ecrã antes da viragem do milénio viveu relacionamentos mais próximos com as visões de escritores do género e herdou entusiasmos lançados por fenómenos nas salas de cinema. Muitas vezes as audiências não eram impressionantes, em muitos casos os fenómenos de culto tendo emergido mais tarde, até mesmo quando os episódios começaram a surgir em horários votados a repetições. Não se conta todavia a história da ficção científica no século XX sem a contribuição que algumas séries deram ao género. E são dez dessas séries que vamos aqui evocar. Todas elas produzidas e estreadas antes das datas míticas lançadas quer pelo 2001 de Kubrick ou aquele 13 de setembro de 1999 no qual, como mostrava a série criada por Gerry Anderson, a Lua era projetada para fora da órbita da Terra. Entremos, assim, nos domínios clássicos da ficção científica televisiva.

Acompanhe aqui, na Máquina de Escrever, a apresentação dos 10 títulos escolhidos.

Para ler: uma reflexão
sobre os novos Marretas

Ao que parece a nova namorada de Cocas, o sapo, é mais jovem e mais magra que Miss Piggy... E chama-se Denise. Aqui ficam umas palavras publicadas no Guardian sobre o tema.

Podem ler aqui

Claude Lanzmann — entre o ver e o dizer

A edição em DVD de O Último dos Injustos, de Claude Lanzmann, é um bom pretexto para repensarmos as relações entre o olhar e as palavras, o ver e o dizer — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Agosto), com o título 'Como falamos daquilo que vemos?'.

Na vida cultural portuguesa, está instalado um peculiar discurso de apologia e defesa da memória. Ora, mesmo sem pormos em causa essa defesa (essencial na definição de qualquer identidade histórica), vale a pena perguntar que apologia se está a sustentar.
Dois universos contêm sinais reveladores. A política, antes do mais, em que a defesa da memória tende a reduzir-se, não poucas vezes, à preservação do património arquitectónico (cuja importância, entenda-se, não está minimamente em causa). E a televisão, confundindo o trabalho da memória com a multiplicação de imagens “simbólicas”, repetidas e repetitivas — pergunta-se, a propósito: que consolidação da memória do 25 de Abril resultou da repetição anual, ao longo de décadas, das mesmas imagens dos soldados e da multidão no Largo do Carmo, sempre com a mesma marcha militar em fundo sonoro?
Reencontro tais dúvidas a pretexto de O Último dos Injustos, o filme de Claude Lanzmann sobre Benjamin Murmelstein, derradeiro presidente do Conselho Judeu do gueto de Theresienstadt, o único que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial (estreado por ocasião dos 70 anos do fim do conflito, chegou agora ao mercado do DVD). O Último dos Injustos organiza-se, aliás, como um duplo exercício de memória: primeiro, com o registo de uma conversa de Lanzmann com Murmelstein, em 1975, recordando, em particular, o seu trabalho para preservar a vida de muitos judeus (entrevista registada no âmbito da rodagem do monumental Shoah, lançado em 1985); depois, através do retorno do realizador, em 2012, aos lugares que envolvem memórias das atrocidades nazis.
Sabemos que a visão de Lanzmann continua a ser muito discutida por causa da sua opção central de não integrar imagens de arquivo. E mesmo considerando (como eu considero) que Lanzmann é um dos mais importantes retratistas da Solução Final, importa dizer que alguns argumentos contra essa opção merecem ser devidamente avaliados. Em qualquer caso, importa também revalorizar o cerne do seu cinema. Assim, Shoah e O Último dos Injustos — tal como Sobibor, 14 de Outubro 1943, 16 Horas (2001), sobre a única revolta bem sucedida num campo de extermínio nazi — são objectos de cinema edificados, não através da crença pueril na “transparência” das imagens, antes a partir do valor primordial da palavra.
Como falamos daquilo que vemos? Eis a interrogação fulcral de Lanzmann, tendo como ponto de partida o mais difícil de ver: as imagens do Holocausto. É uma interrogação tanto mais actual e urgente quanto, por vezes, o espaço social se apresenta ocupado por avaliações anedóticas do exercício da fala. Observe-se, por exemplo, a agitação das forças políticas em torno dos elencos dos debates televisivos sobre as próximas eleições. Como sempre, não se discutem as formas de pensar/dizer a política, mas uma banal questão de quorum no espaço televisivo — são sintomas cruéis da indiferença dos nossos políticos em relação às linguagens do audiovisual.

terça-feira, setembro 01, 2015

As imagens 4K

Imagens em 4K? Bem sabemos que a designação técnica envolve uma promessa de qualidade que, em qualquer caso, não é ainda a regra dominante no espaço do consumo televisivo ou cinematográfico (lembremos, por exemplo, que a apresentação de uma cópia 4K de Taxi Driver constituiu um acontecimento de importantes ressonâncias simbólicas no Festival de Berlim de 2011). Agora, para promover os seus novos televisores 4K, a LG apresenta uma curiosa campanha apostada em sugerir-nos que, afinal, nunca vimos os filmes na verdade mais visceral das suas imagens: a frase promocional diz mesmo que "a maneira como vemos filmes está ultrapassada".
É um trabalho da agência brasileira Y&R, aqui recordado através das evocações de Shining (1980), E. T. (1982) e O Padrinho (1972) — acrescentam-se as imagens dos próprios filmes para sublinhar este jogo sarcástico de reconhecimento & surpresa.

Wes Craven (1939 - 2015)

Figura de culto do género de terror, argumentista, produtor e realizador, o americano Wes Craven faleceu no dia 30 de Agosto, em Los Angeles, vitimado por um tumor no cérebro — contava 76 anos.
Os Olhos da Montanha (1977) foi o título que o projectou como um novo experimentador do terror. Explorando um universo em que qualquer fronteira entre a vida vivida e a vida sonhada é sempre instável, para não dizer inexistente, o seu trabalho ficou marcado por duas séries: Pesadelo em Elm Street, cujo primeiro título, de 1984, lançou a carreira de Johnny Depp, e Scream/Gritos, iniciada em 1996; a primeira série impôs a figura de Freddy Krueger (Robert Englund), o assassino de dedos com lâminas que persegue as suas vítimas nos sonhos, acabando por tornar-se uma das mais conhecidas personagens do terror das últimas décadas. Num registo bem diferente, Craven assinou Melodia do Coração (1999), sobre uma professora de violino numa escola do Harlem, interpretada por Meryl Streep. Em 2012, o Festival de Cinema de Terror de Nova Iorque distinguiu-o com um prémio de carreira.

>>> Trailer do primeiro Pesadelo em Elm Street e extracto de uma entrevista em que Wes Craven dá o seu conselho aos jovens cineastas.




>>> Obituário no New York Times.
>>> Site oficial de Wes Craven.