sexta-feira, agosto 28, 2015

Quando Tati pensou filmar os Sparks

A edição especial de verão da revista “Sofilm” é dedicada a histórias de relacionamento entre o cinema e a música pop/rock. Sparks, Bob Dylan, Neil Young, Elvis Presley ou Jim Jarmusch passam por estas páginas.


Em 1975, numa reunião no Hotel Hilton, em Paris, o realizador francês Jacques Tati encontrava-se com dois músicos norte-americanos que, nos últimos anos, tinham dado sinais de personalidade (e grande sentido) de humor ao vestir os encantamentos do glam rock não em busca de um lugar no comboio lançado por Bowie e Bolan, mas assimilando antes ecos de tradições do cinema norte-americano, nomeadamente Charlie Chaplin. Desafiava então os Sparks para tomarem um lugar de protagonismo em Confusion, um novo projeto a filmar para televisão no qual encenaria a morte de Mr. Hulot durante um direto e, na lógica do show must go on, a emissão não seria interrompida. E a 15 de março desse ano era emitido um comunicado de imprensa, revelando o novo projeto, confirmando que a rodagem teria início ainda esse ano e que os papéis principais caberiam a Tati e a Ron e Russel Mael. O projeto de financiamento acabou por ser mais longo do que o esperado e, quando em 1982 as condições estavam finalmente reunidas para filmar, a morte do realizador, aos 75 anos, deixou o projeto por concluir, sobrevivendo o argumento, a canção-tema (que surgiu no álbum Big Beat, de 1976 – ouvir em baixo) e as memórias dos que lhe chegaram a dedicar tempo e atenção. Algumas dessas figuras são ouvidas em “La Confusion des Genres”, um dos artigos que podemos encontrar na edição especial de verão da revista francesa Sofilm, integralmente dedicada à relação da música com o cinema.

Nas suas 116 páginas, esta edição dedica artigos a Henry Mancini, ao filme Spice World com as Spice Girls (o tiro ao lado desta edição) a Straight To Hell (filme de 1986 de Alex Cox com Joe Strummer, Courtney Love, Grace Jones e Elvis Costello), a Human Highway (que Neil Young co-realizou sob o pseudónimo Bernard Sharkey), a Renald and Clara (realizado em 1978 por Bob Dylan) ao histórico Space is The Place (com Sun Ra), um pequeno feature sobre bandas sonoras rejeitadas e uma inevitável referência aos documentários sobre Amy Winehouse e Nina Simone recentemente estreados, entre outros mais temas.

A revista inclui uma entrevista com Jim Jarmusch, um texto sobre um álbum punk de Ben Stiller e apresenta um portfólio dedicado a Elvis Presley e ainda uma série cronologias e listas Top 10… E vale a pena passar por algumas dessas listas, goste-se ou não das escolhas feitas (como manda a regra de quem gosta de ver listas).

Há uma dedicada às piores cenas de dança e outra aos piores biopics musicais, por onde passam filmes dedicados a Lully, Frankie Valli ou Beethoven… Havia piores, convenhamos. Há um outro sobre “cameos” de músicos em filmes.

Fica claro, por indicação na capa, que estas histórias de cinema e música são focadas em terreno rock’n’roll. Não era má ideia que, numa outra ocasião, outras músicas e outros filmes com música venham a merecer uma tão variada seleção de artigos par ir lendo nestes dias mais quentes e longos de verão.

Para ler: Laibach falam
da ida à Coreia do Norte

A um dia de atuarem em Leiria vale a pena ler o que contam os Laibach da sua passagem (histórica) por Pyongyang. Ent.revista à Rolling Stone.

Para ler aqui

Lance Armstrong por Stephen Frears

A saga de glória e impostura do ciclista Lance Armstrong já está filmada por Stephen Frears, com Ben Foster no papel central. Faz parte do alinhamento do Festival de Toronto (10-20 Set.) — cartaz e trailer.

quinta-feira, agosto 27, 2015

Frank Zappa, opus 100

Digamos, para simplificar, que algures em 1993 Frank Zappa desembocou num trabalho em que a acumulação de sons (electrónica, ambientes, água a escorrer...) se conjugou com a visita de um grupo de cantores da República de Tuva, na Sibéria do sul. Isto para além de um apaixonado regresso aos sentimentos tradicionais (?) da guitarra, cruzados com o uso obsessivo do Synclavier e a presença clássica (?) do piano. Estranho? Muito estranho, caro leitor. E apetece dizer: tanto mais fascinante quanto mais estranho.
Na prática, aí está, finalmente editado no ano da graça de 2015, o álbum nº 100 da discografia oficial de Zappa, terminado pouco antes da morte do músico, a 4 de Dezembro de 1993 (contava 52 anos). Dizer que se trata de um exercício que encaixa no género experimental é quase uma ofensa, de tal modo aquilo que aqui acontece se distancia de qualquer noção estabilizada de género. Fiquemo-nos, para já, pela ideia de que se trata de um apelo/desafio à dança, festivamente formulado no título Dance Me This. E evitemos a facilidade de repetir que Zappa está sempre à frente do seu tempo. Acontece que o seu génio inventa a medida do seu próprio tempo — resta-nos acertar o relógio.


>>> Dance Me This no PopMatters.

quarta-feira, agosto 26, 2015

A cultura segundo António Costa

YASUJIRO OZU
(1903-1963)
De que falam os partidos quando (dizem que) falam de cultura? E, no espaço cultural, como pensam (ou não pensam) o poder cultural televisivo? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Agosto).

Com típica euforia mediática, sobretudo televisiva, proliferaram as citações da afirmação de António Costa (em entrevista ao jornal Sol) segundo a qual encararia a possibilidade de um Bloco Central “só se houver uma ameaça de invasão de marcianos”... Enfim, num país de imagens pitorescas, é natural que a informação seja muitas vezes tratada como hipótese de pitoresco.
Poucos foram os que destacaram o facto de o líder do Partido Socialista ter manifestado a vontade de refazer um ministério para a área da cultura. Aliás, Costa não se limitou a revalidar esse modelo que vigorou até José Sócrates (inclusive); ao mesmo tempo, definiu como tarefa prioritária de tal ministério a integração das áreas de “audiovisual, imprensa, rádio e novos media”.
Essa possível abrangência de um novo ministério da Cultura envolve um fascinante desafio ideológico. Na verdade, nos últimos anos, todos os partidos políticos (incluindo o PS) foram metodicamente evitando qualquer tomada de posição sobre o desenvolvimento do audiovisual, em particular remetendo-se a um silêncio cúmplice face ao triunfo da obscenidade populista em muitas zonas do território televisivo. Ora, pede-se à classe política algo mais do que a acumulação de frases de pueril exaltação do legado de Manoel de Oliveira — o cinismo ofende e a gestão política da Cultura não se faz por soundbytes.
O assunto é delicado, recomendando alguma desdramatização legislativa. De facto, pensar — e, primeiro que tudo, pensar politicamente — o populismo televisivo não é o mesmo que dizer que as empresas dessa área devam ser sujeitas a qualquer interdição decorrente de alguma legislação autoritária sobre os “conteúdos” que produzem ou difundem, mesmo os que são apenas lixo.
Acontece que o Estado (salvo melhor opinião, tal “coisa” ainda existe) deve encarar os desequilíbrios que podem afectar a dinâmica de todas as áreas sociais, incluindo a cultura. Só mesmo as boas almas esperarão que os espectadores educados pelo modelo telenovelesco há quase quatro décadas (desde 1977, para sermos precisos) terminem o serão descobrindo as cópias restauradas dos filmes de Yasujiro Ozu...
A caricatura é, infelizmente, realista. De um realismo que exige ao Estado a criação de condições para a continuada diversificação da produção, difusão e também, hélas!, promoção dos produtos audiovisuais. O projecto de um novo ministério da Cultura constitui, por isso, uma perversa caixa de Pandora que forçará todos os partidos (a começar pelo PS) a testar a sua visão da vida cultural portuguesa, nem que seja através de uma típica atitude de demissão.
Para já, sublinhemos o facto de alguém da área política reconhecer aquilo que, há décadas, tem sido humildemente dito e repetido por alguns dos menos bafejados pelo talento da arte política. A saber: a televisão é um território de permanente confronto de valores, não um paraíso isento de implicações culturais — é mesmo um dos espaços vitais da nossa identidade cultural.

terça-feira, agosto 25, 2015

"Born to Run", 40 anos

Era (e continuou a ser...) o tempo em que as capas dos discos de vinyl, para além da sua dimensão específica, podiam integrar um conceito visual que ligasse capa e contracapa. Assim acontece em Born to Run, de Bruce Springsteen, através da lendária fotografia registada por Eric Meola: a pose de Springsteen com o saxofonista Clarence Clemons (1942-2011) só é visível quando se abre a capa; adquiriu tal valor iconográfico que, muitas vezes, nos concertos da época, os dois aproveitavam algum momento de transição para a "reproduzir" em palco.
Born to Run foi lançado a 25 de Agosto de 1975 — faz hoje 40 anos. Depois de Greetings from Asbury Park, N.J. (1973) e The Wild, the Innocent & the E Street Shuffle (1973), Springsteen apostava num som menos experimental, mais susceptível de mobilizar grandes audiências. E o menos que se pode dizer é que a transfiguração o impôs como uma nova estrela, sem alienar as raízes patrimoniais do seu rock. Canções como Thunder Road, Born to Run e Jungleland materializam uma ultrapassagem de qualquer resquício de temáticas da adolescência, abrindo para uma dimensão ao mesmo tempo vibrante e confessional que prosseguiria através de Darkness on the Edge of Town (1978), The River (1980) e Nebraska (1982), para atingir o seu cume em Born in the U.S.A. (1984). É assim, por exemplo, que o tema-título abre com estes versos:

In the day we sweat it out on the streets of a runaway American dream
At night we ride through mansions of glory in suicide machines
Sprung from cages on Highway 9, chrome-wheeled, fuel-injected, and stepping out over the line
Whoah baby, this town rips the bones from your back, it's a death trap
It's a suicide rap, we gotta get out while we're young
'Cause tramps like us, baby we were born to run

Hoje mesmo, Bruce Springsteen partilhou uma breve memória de Born to Run. Entretanto, aqui ficam Thunder Road (registo do álbum) e Born to Run (ao vivo).



Eve Risser — cidade, neve e piano

Dizem as notas biográficas da francesa Eve Risser que o piano não foi uma prioridade na sua expressão: foi surgindo e, de alguma maniera, impondo-se como linguagem dominante. Não admira que, ao escutarmos um álbum tão estranho e fascinante como Des Pas Sur la Neige, sintamos o seu empenho em conduzir o piano (preparado) a zonas de expressão que parecem desmentir a sua identidade, tanto quanto, paradoxalmente, confirmar a sua especificidade. A metáfora da neve, misto de instabilidade e firmeza, envolve uma arquitectura que, no limite, se confunde com o imaginário da cidade: as três faixas do disco chamam-se mesmo, por esta ordem, Des Pas Sur la Neige, Des Pas Sur la Ville e La Neige Sur la Ville — ei-la numa performance no Kongsberg Jazz de 2014.


>>> Site de Eve Risser.

Foi você que disse "economia real"?

1. A crise económico-financeira de 2008 e os seus muitos ecos são tudo menos simples ou transparentes. A respectiva percepção, difusa e ansiosa, pelo "cidadão comum" (lugar que, na ambivalência das simbologias agregadoras, todos ocupamos) é mesmo uma das grandes questões culturais e comunicacionais do tempo presente — vale a pena ler, a esse propósito, o leque de reflexões de Daniel Carrapa, começando por um de vários posts no seu blog 'A Barriga de um Arquitecto'.

2. Apesar disso — corrijo: precisamente por causa disso —, creio que seria pertinente questionar as linguagens correntes, nomeadamente no espaço televisivo e na Internet, que os analistas tendem a empregar. Veja-se este video de dois jornalistas do jornal Le Monde sobre as convulsões da bolsa chinesa. Respeito da complexidade do que está em jogo? Certamente. Rigor e seriedade? Não é isso que está em causa. De onde vem, então, a persistência (mais do que isso: o automatismo) da noção de "economia real"? A economia, perversa e predadora, que está a matar os nossos valores de civilização será, então, "irreal"?


Chine : pourquoi la bourse dévisse por lemondefr

3. Não é, entenda-se, um mero problema de perspectiva analítica que está em jogo. Um pouco como a utilização anédotica (a meu ver, em última instância, culturalmente irresponsável) da noção de "justiça" para avaliar os resultados dos jogos de futebol... A questão, nunca respondida pelos comentadores, é outra: que sistema legal torna "injusto", logo passível de emenda e punição, o facto de uma equipa jogar "mal" e ganhar um jogo? Como é que os comentadores se atrevem a proclamar que um resultado é "aceitável"? Não o sendo, sugerem que a equipa derrotada recorra aos tribunais? Em nome de que conceito social e moral põem a circular a ideia segundo a qual uma equipa (e os seus adeptos, hélas!) pode não aceitar um resultado?

4. Para além da miséria conceptual do anedotário futebolístico, os modelos correntes das reportagens televisivas, com os relatores inseridos (embedded) numa determinada "acção", são intensamente reveladores. Assim, o permanente e demagógico subtexto proclama que o "nosso" repórter está lá a transcrever os acontecimentos... Será preciso relembrar que, ao longo dos últimos 120 anos, quem tenha gasto cinco segundos de inteligência a reflectir sobre o que é uma câmara (filme, video, etc.), sabe que não existe transcrição audiovisual? Dito de outro modo: as imagens (e os sons!) não repetem o real, antes o ampliam e reconvertem, em última análise reconfigurando as nossas relações com tudo aquilo que representam.

5. O drama analítico da "economia real" é, por tudo isso, também um drama de linguagem. A maior parte dos protagonistas do espaço mediático não quer pensar a sua própria linguagem porque sabe que a persistência do valor de imanência do seu "naturalismo" constitui uma visceral forma de poder. Sobre quem? O espectador.

À chegada das Mil e uma Noites

Miguel Gomes
Chega, finalmente, às salas, As Mil e uma Noites, de Miguel Gomes: uma aventura realista portuguesa elaborada através de uma aposta máxima na fantasia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Agosto), com o título 'Quando o cinema fala do nosso aqui e agora'.

O primeiro volume de As Mil e uma Noites, intitulado O Inquieto, estará nas salas a partir de quinta-feira (dia 27). O segundo (O Desolado) e o terceiro (O Encantado) chegarão a 24 de Setembro e 1 de Outubro, respectivamente. Ao surgir esta primeira parte, talvez seja inevitável dizer que o filme de Miguel Gomes se oferece ao seu espectador enredado numa teia simbólica sem um fim à vista. Aliás, em rigor: sem procurar “solução” para a sua deriva. No sentido mais desconcertante, e também mais fascinante, que tal opção pode envolver.
Que se passa, então? É preciso conhecer o primeiro filme para compreender o segundo? E o segundo para decifrar o terceiro?... E que vai acontecer aos espectadores que vejam os três de forma não linear?
São interrogações que não encontrarão nenhuma resposta de senso comum, quanto mais não seja porque As Mil e uma Noites é um filme feito contra o senso comum, quer dizer, contra os mecanismos que trabalham para criar uma pueril ilusão comunitária. Quais? As chamadas redes “sociais” em que, tantas vezes, deixa de haver indivíduos para apenas existirem links e likes. E também, claro, o império da telenovela, essa matriz narrativa que impôs a sua estética ditatorial há mais de três décadas.
Num certo sentido, As Mil e uma Noites é uma novela ou um folhetim (e escusado será dizer que a sua divisão em capítulos envolve tal sugestão). Mas é-o no sentido em que a acumulação de episódios gera, não uma normalização de temas e personagens, antes a sua frondosa diversificação, num processo em que a seriedade da narrativa é sempre cúmplice de um contagiante humor.
O próprio Miguel Gomes encena-se neste primeiro volume como um cineasta em fuga. Não exactamente da realidade, mas da própria equipa. É, obviamente, um intermezzo paródico que, em qualquer caso, envolve uma sugestão pedagógica: não se trata apenas de mudar de histórias, mas de arriscar mudar as maneiras de contar histórias.
Crista Alfaiate
Daí a convocação das Mil e uma Noites e da sua personagem emblemática, Xerazade (Crista Alfaiate) — ela ressurge, afinal, como aquela em que o desejo de contar histórias é tão só uma variação da vontade de sobrevivência. Daí também o paradoxo maior do trabalho de Miguel Gomes: por um lado, tudo se organiza em nome da fantasia inerente à colagem festiva das mais contrastadas peripécias; por outro lado, desde a crueza da situação dos desempregados até ao primeiro banho do ano, passando por um exterminador de vespas que atacam as abelhas, a fantasia não rasura, antes parece atrair, as marcas de um país que reconhecemos como o território, real ou imaginado, do nosso aqui e agora.
É um facto: sentimo-nos algo perdidos no meio destas Mil e uma Noites. Mas se queremos narrativas certas, formatadas, empenhadas em promover uma linguagem de intermináveis estereótipos, será melhor ligarmos o televisor por volta das nove e meia da noite... Aqui, somos convocados para uma perdição que implica a discussão de todos os padrões narrativos — como filmar este país que é o nosso? E também uma reavaliação do próprio prazer de ser espectador — como sermos dignos da loucura branda de Xerazade?

segunda-feira, agosto 24, 2015

A ameaça chinesa ou a teoria do apocalipse

a. A agitação nas bolsas chinesas — o Libération (dia 25) titula mesmo: 'A grande ameaça da China' — surge como um novo fantasma, muito real segundo os especialistas [p. ex.: The Economist], capaz de (re)lançar a crise em todos os nossos modos de vida. Globalização. Ponto final.

b. O mais espantoso, quer dizer, o mais assustador é o facto de, a partir do lugar vulnerável do cidadão anónimo, apenas de vislumbrar o pânico e os seus ecos abstractos — uma vez mais. Dito de outro modo: vivemos num mundo comandado pelas histerias cíclicas de economia & finanças em que, em boa verdade, todos os dias deparamos com a sensação de uma trágica irrisão lançada sobre o jogo clássico da política. Como se já não houvesse políticos, mas apenas gestores da destruição gerada pelos "mercados".

c. Ao mesmo tempo, muitos especialistas económicos e financeiros (em pose jornalística, na maior parte dos casos) mantêm um discurso que se situa, ou acredita que se situa, numa perspectiva racional sobre todas estas atribulações. É um racionalismo que cultiva uma dramaturgia pueril: cada vez que os factos contrariam as suas teses, outra tese emerge, relançando a teoria do apocalipse — afinal, estão a falar de quê?