sábado, abril 19, 2025

A herança de Prince
* SOUND + VISION Magazine [FNAC, 26 abril]

O álbum Around the World in a Day, de Prince, foi lançado há 40 anos. É um bom momento para revisitarmos as suas imagens e sons, redescobrindo sinais multifacetados de uma herança musical (e não só) que continua viva no nosso presente.

>>> FNAC Chiado — 26 abril (17h00).

Joni Mitchell e Belinda Carlile, A Case of You

Esta vem a propósito de... coisa nenhuma.
A Case of You, canção emblemática do universo de Joni Mitchell (surgiu no álbum Blue, 1971), é também um hino paradoxal, romântico e anti-romântico, que se inscreveu no imaginário da música popular como um clássico de todos os momentos, alheio a tendências, modas, conceitos e preconceitos. Entre as muitas variações que suscitou, eis uma das mais recentes, e também mais comoventes — foi a 24 de julho de 2022, com Joni Mitchell e Brandi Carlile no Newport Folk Festival.
 

Nova canção das Haim

Everybody’s Trying To Figure Me Out: as Haim apresentam mais uma nova canção (depois de Relationships), apontando para um quarto álbum de estúdio, ainda sem título nem data de lançamento. Seja como for, se a primavera atrai as nuances da pop, eis a prova.

Um filme igual ao trailer [O Amador]

Rami Malek numa (medíocre) imitação de thrillers dos anos 70

Rami Malek reaparece nos ecrãs, acumulando as funções de produtor e intérprete em O Amador, uma variação sobre o modelo clássico dos dramas vividos nos bastidores da CIA: são boas memórias cinéfilas, mas agora com resultados medíocres — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 abril).

Rami Malek é um dos fenómenos mais desconcertantes na história dos Oscars de Hollywood. A sua composição esquemática, à beira da involuntária caricatura, de Freddie Mercury em Bohemian Rhapsody valeu-lhe um Oscar em que venceu, entre outros, Christian Bale (Vice) e Bradley Cooper (Assim Nasce uma Estrela)... e até Clint Eastwood enquanto protagonista da sua notável realização Correio de Droga (mas Eastwood nem sequer estava nomeado).
Uma coisa é certa: adquiriu um estatuto privilegiado no interior da indústria que, com toda a legitimidade, tenta rentabilizar a seu favor. Assim acontece com O Amador, uma realização de James Hawes com chancela do império Disney, através da 20th Century Studios (ex-Fox). Malek acumula as funções de produtor e intérprete de Charles Heller, analista de códigos informáticos da CIA cuja mulher é morta num atentado que envolve vários suspeitos que a própria agência andava a investigar...
A história nasce de uma típica contradição dramática. A saber: a sede de vingança de Heller vai confrontar-se com as reticências dos seus superiores que, afinal, talvez tenham algo a esconder... E ao referir este aspecto, não há nenhuma revelação para lá do razoável, já que tudo isto (e muito mais!) está no trailer — O Amador é mesmo um daqueles filmes em que o espectador é convocado, não para descobrir o que quer que seja, apenas para confirmar aquilo que já sabe.
Estamos perante um modelo de thriller que teve algumas concretizações admiráveis há cerca de 50 anos, incluindo A Última Testemunha (Alan J. Pakula, 1974) e Os Três Dias do Condor (Sydney Pollack, 1975). Agora, a proliferação de computadores e ecrãs é tratada como sintoma da “complexidade” da acção, mas em boa verdade não acontece nada de relevante, a não ser que Heller, para lá de resolver todos os seus problemas através de algum computador que esteja mais à mão, saltita de cidade em cidade, da América para a Europa, com a agilidade de uma figura de desenho animado. No meio da confusão aparecem alguns intérpretes muito talentosos, como Julianne Nicholson ou Michael Stuhlbarg, perdidos no simplismo das personagens que lhes entregaram.

sexta-feira, abril 18, 2025

World Press Photo — a fotografia do ano

[fragmento]
Mahmoud Ajjour, nove anos de idade
FOTO: Samar Abu Elouf / The New York Times

I. Nos tempos que correm, mesmo não ignorando a pertinência jornalística das imagens televisivas (cada vez menos, de tal modo assistimos ao espectáculo obsceno de canais "informativos" transformados em tribunais de uma razão que ninguém assume, mas quase todos reivindicam), a imagem fixa pode adquirir um valor informativo cada vez mais essencial no mundo agitado e acelerado em que vivemos.

II. A fotografia assinada pela palestiniana Samar Abu Elouf, vencedora do World Press Photo, é uma dessas imagens capaz de resistir à vertigem mediática do tempo, devolvendo-nos a possibilidade de um instante (ou uma eternidade) de contemplação — e sabemos que a contemplação se tornou um valor menosprezado pela maior parte dos circuitos (ditos) sociais.

III. O retrato de Mahmoud Ajjour, ferido durante um ataque de Israel a Gaza em março de 2024 (obtido em Doha, no Qatar), surge, assim, como um objecto capaz de congregar a frieza informativa com o testemunho histórico e uma infinita perturbação simbólica.

IV. Objecto, sim, não no sentido corrente consagrado pelo mais medíocre jornalismo em que tudo pode ser sujeito a processos maniqueístas de objectificação; objecto como retrato, precisamente, afinal uma matriz fotográfica — com uma nobre tradição no foto-jornalismo — que foi alienando o seu fulgor clássico, ao mesmo tempo perdendo o espaço que, tradicionalmente, lhe eram dedicado.

V. Estamos, afinal, perante uma imagem fotográfica que nos leva a (re)pensar os efeitos dos próprios contextos em que que as imagens são expostas — essa é, sem dúvida, uma tarefa que tem tanto de jornalístico como de político, numa palavra, cultural.

>>> Video da World Press Photo Foundation, com depoimento de Samar Abu Elouf.
 

Jack Nicholson e Maria Schneider
— memórias de 1975

Nicholson/Schneider: o mundo segundo Antonioni

Lançado há 50 anos, Profissão: Repórter é um filme sobre a questão muito presente do humanismo que perdemos — este texto está publicado no Diário de Notícias (18 abril), na zona de Opinião, 'Entre as imagens'.

Mesmo evitando sobrecarregar as efemérides de significados simbólicos que se limitem a alimentar a nossa nostalgia ou apaziguar as nossas angústias, há qualquer coisa de perturbante neste simples facto: o filme Profissão: Repórter, de Michelangelo Antonioni (1912-2007), chegou às salas de cinema há 50 anos. Porquê perturbante? Porque se trata de um título fulcral na obra de um cineasta que nos legou um património de narrativas em que as relações homem/mulher são, por assim dizer, sujeitas à discussão da sua própria possibilidade — ou impossibilidade.
Escusado será dizer que Antonioni é um pós-romântico. O seu fascínio, gélido mas intenso, leva-o a conjugar actores e actrizes capazes de encarnar essa sensação de viverem relações de proximidade (não necessariamente amorosas) em cenários que, sobretudo durante a década de 1960, remetiam o espectador para as fissuras daquilo que, de forma mais ou menos equívoca, entrou na história como “sociedade de consumo”. A célebre trilogia a preto e branco dominada pela presença de Monica Vitti — A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962) — existe como uma coleção de retratos em que as evidências sociais de masculino e feminino se vão dissolvendo numa avalanche de silêncios que o “consumo”, precisamente, não consegue superar. Penso, sobretudo, em Monica Vitti na companhia de Alain Delon em O Eclipse: as suas deambulações pelos espaços de um novo urbanismo concebido para vender uma noção transparente de felicidade são, de facto, retratos de duas solidões à procura de uma via de comunicação em que cada um possa sentir que existe — para si e para o outro.
Delon/Vitti (1962)

Profissão: Repórter surgiu, assim, em 1975 como o prolongamento de três experiências para lá das paisagens italianas. Creio que a primeira dessas experiências, Blow-up (1966), vivida em cenários londrinos, continua a ser o filme mais conhecido de Antonioni; a segunda, Zabriskie Point (1970), projecta-nos numa América despojada da mitologia clássica do seu território; enfim, a terceira, Chung Kuo (1972), é um espantoso documentário sobre a China.
[1981]
Jack Nicholson, protagonista de Profissão: Repórter, pode ser descrito como o amargo herdeiro de todos esses ziguezagues cinematográficos e existenciais. Ele é, afinal, um jornalista confrontado com a decomposição de um mundo que já não existe através de dados concretos e partilháveis, entregue que está ao jogo das máscaras e ao poder dos simulacros (o livro seminal de Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação, surgiria em 1981). O misto de angústia e medo em que vive leva-o mesmo a assumir a identidade de um homem que morreu — é nesse vazio existencial e corporal que conhece uma personagem feminina (a que Antonioni não atribui um nome) interpretada por Maria Schneider.
Sem romantismo redentor, mas também sem expectativas utópicas, Nicholson e Schneider, assombrosos e assombrados, interpretam um “conjunto” que não chega a ser um par, muito menos um casal. A cumplicidade que entre eles se desenha confunde-se com uma vulnerabilidade sem destino — talvez se possa mesmo descrever a estrutura narrativa de Profissão: Repórter como a hipótese de uma aventura que não chega a materializar o seu mapa existencial. Quem conheça o filme, lembrar-se-á que a sua prodigiosa cena final nasce, justamente, da crueldade de um espaço que perdeu todas as suas coordenadas.
As convulsões dramáticas de Profissão: Repórter ecoam, ponto por ponto, no nosso tempo de 2025 (o filme está disponível na plataforma Filmin). Genuinamente premonitório, o trabalho de Antonioni pressente, não apenas a decomposição do humanismo clássico, mas também a necessidade de pensar para lá dos clichés correntes da comunicação — como se revíssemos a saga de Adão e Eva, mas já não há paraíso.
ALBRECHT DÜRER
Adão e Eva (1504)
>>> Trailer de Profissão: Repórter + entrevista televisiva de Antonioni (1964) + Oscar honorário para Antonioni (1995).
 




Somos todos australianos
— sobre o consumo da internet

Imagem promocional do filme Eis o Admirável Mundo em Rede (2016)

Como é que os mais jovens se envolvem com a internet? Eis uma pergunta de uma só vez cultural e política — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 abril).

Se procurarmos na internet as notícias mais recentes sobre o primeiro-ministro da Austrália, podemos encontrar muitos relatos, fotografias e videos sobre o incidente (benigno) que protagonizou numa sessão de campanha eleitoral, na quinta-feira, em Lovedale, New South Wales: ao posar para os fotógrafos, Anthony Albanese escorregou e caiu do estrado em que se encontrava... Entretanto, no mesmo dia, outra notícia sobre Albanese teve no espaço mediático um tratamento incomparavelmente mais discreto — como se prova, uma queda tem sempre boa cotação junto do jornalismo mais preguiçoso.
Acontece que o chefe do governo australiano deu uma conferência de imprensa em que estiveram em destaque temas nacionais, como o custo do aluguer das habitações, a par da situação no Médio Oriente e das suas relações com Donald Trump. Com um detalhe importante: ao lado dos jornalistas, o evento contou com algumas crianças, convidadas pelo próprio Albanese para poderem questioná-lo para uma emissão de Behind the News (programa televisivo da ABC australiana, criado em 1968, visando os espectadores com idades entre os 10 e os 13 anos).
A certa altura, uma menina de nome Lana, 11 anos de idade, estudante de uma escola primária dos subúrbios de Camberra, questionou o primeiro-ministro: “Considera que as redes sociais têm algum impacto nas crianças?” Albanese não se perdeu em qualquer facilidade retórica: “Certamente que têm, e é por isso que vamos banir as redes sociais para os menores de 16 anos.”
Em termos políticos, a afirmação não era nova, ecoando uma decisão do governo australiano anunciada no final do ano passado. Convém, por isso, evitar ceder à histeria de muitos debates televisivos, recusando esse esquematismo sem pensamento que poderá atrair um qualquer alarmismo do género: “Vamos, então, proibir os telemóveis?” De acordo com um texto do próprio Albanese (publicado no site do governo australiano a 21 de novembro de 2024), trata-se de uma “lei concebida para responder às transformações da tecnologia e dos serviços”. De tal modo que o primeiro-ministro não hesita em dar exemplos de plataformas cujas condições de acesso deverão ser atentamente controladas: Snapchat, TikTok, Instagram e X. Aliás, com a subtileza que o distingue, Elon Musk não perdeu a oportunidade de proclamar que o governo australiano é formado por “fascistas” e que os condicionalismos etários previstos pela nova legislação têm como objectivo assegurar “o controlo do acesso à internet por todos os australianos” (sic).
Em boa verdade, novos e velhos, somos todos australianos. Não que a legislação do governo de Albanese possa ser encarada como um modelo absoluto, automaticamente transponível para qualquer contexto. O que está em jogo é muito diferente e, no caso português, tanto mais difícil de encarar e pensar quanto assistimos a infinitas batalhas navais sobre o orçamento de Estado, os candidatos presidenciais ou, agora, as eleições legislativas sem que haja um dirigente partidário (ou um comentador) que pronuncie a palavra “cultura”.
Porque é de uma tragédia cultural que se trata. Para lá de qualquer estupidez maniqueísta, importa lidar com esta conjuntura em que, da construção do conhecimento à estruturação dos valores individuais e colectivos — chama-se a isso, justamente, cultura —, tudo se transfigurou. O cinema nunca desistiu de nos avisar para o que tem estado a acontecer — recorde-se a contundência analítica da obra-prima de David Fincher, A Rede Social (2010), ou o documentário didáctico de Werner Herzog, Eis o Admirável Mundo em Rede (2016). A ilusão libertária com que muito boa gente, incluindo jornalistas, acolheu a eclosão das redes (ditas) sociais afastou-nos de uma necessária reflexão sobre que sociedade se estava a construir. E também que sociedade aceitamos destruir.

Take Me Out To a Bar / What Am I, Gatsby?
— novo álbum de Sarah Mary Chadwick

A neo-zelandesa Sarah Mary Chadwick tem um novo álbum: Take Me Out To a Bar / What Am I, Gatsby? é mais um belo produto de uma sensibilidade movida por um radical intimismo, aqui numa solidão partilhada apenas com o piano — para escutar e repetir.