Renovando a tradição, a próxima sessão do Sound+Vision Magazine propõe um inventário de algumas memórias (musicais, cinematográficas) que marcaram o ano de 2025 — não necessariamente um top, antes a recordação de algumas canções e filmes, talvez menos óbvias, que deixaram memórias fortes.
Verdadeira lenda do R&B, Mavis Staples, 86 anos, não editava um álbum desde 2019 (We Get By). Celebremos, por isso, o lançamento de Sad And Beautiful World, nº15 da sua discografia, aqui apresentado no programa de Stephen Colbert com a canção Human Mind.
Não apenas Rufus Wainwright, mas também as irmãs Martha e Lucy, e o pai Loudon Wainwright III — The Wainwrights estiveram no programa de Jimmy Kimmel, interpretando If We Make It Through December, um clássico de Natal, da colheita de 1973, composto e interpretado por Merle Haggard and the Strangers.
Consagrado com a Palma de Ouro de Cannes, Foi Só um Acidente é mais uma notável proeza do iraniano Jafar Panahi, um exemplo modelar do trabalho de um cineasta que não desiste de filmar a sociedade do seu país — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (12 novembro).
As histórias que o cineasta iraniano Jafar Panahi conta nos seus filmes são indissociáveis das suas vivências, ou melhor, daquilo que ele gosta de classificar como uma inspiração vinda da sociedade. Assim acontece em Foi Só um Acidente, consagrado em maio com a Palma de Ouro do Festival de Cannes. O implacável desenvolvimento do seu drama envolve um homem que, ao ouvir um determinado som, julga detectar a presença daquele que o torturou na prisão — um som a que, por assim dizer, falta uma imagem. Daí nasce uma tensão visceralmente cinematográfica (imagem/som) que reflecte as convulsões de um espaço social dividido por muitos muros, alguns metafóricos, outros tragicamente realistas. Por alguma razão, Panahi aceita que o classifiquemos, precisamente, como um cineasta realista.
Há uma premissa dramática muito especial a partir da qual se constrói um filme como Foi Só um Acidente. Como surgiu essa premissa e de que modo, a partir daí, desenvolveu o argumento?
Sou um realizador que faz filmes que têm que ver com a sociedade. Nesse sentido, o que me inspira é a própria sociedade, o lugar onde vivo, as pessoas à minha volta — pessoas comuns, mesmo quando se trata apenas de ir ao fundo da rua para comprar alguma coisa na mercearia. Mas podemos pensar noutro contexto, por exemplo convivendo durante alguns meses com pessoas que falam de coisas que são novas. Quando falamos com essas pessoas, não é para encontrar uma ideia para fazer um filme — é apenas uma conversa de fim do dia. O certo é que quando saímos desse contexto, fica a vontade de regressar. E vemos um muro muito longo e alto — estamos de fora, mas essas pessoas ainda estão lá dentro. Não estamos a pensar fazer um filme, mas há um peso que ficou connosco e perguntamos: que posso eu fazer? Talvez possa fazer um filme sobre tudo isso. Como posso começar?
Que muro é esse?
É um muro de uma prisão — está entre nós, que permanecemos de fora, e as pessoas que ainda estão lá dentro. É um muro que nos separa, aprisionando aqueles que serão, talvez, os melhores do nosso país, especialmente os mais jovens. É um muro que alguns governos constroem para manter as pessoas separadas daquilo em que realmente acreditam. Ora, é a altura para fazer alguma coisa pelas pessoas que estão do outro lado do muro. Por isso, é preciso fazer um filme sobre essas pessoas. Como começar? É preciso começar pela nossa própria experiência. Que aconteceu quando estávamos a ser investigados e interrogados? Ao sermos interrogados, éramos colocados em frente a uma parede, com os olhos tapados, davam-nos papel e uma caneta para escrevermos as nossas respostas. A pessoa que me interrogava estava atrás de mim — e eu pensava: qual será o aspecto desta pessoa, poderei reconhecê-la apenas pelo que ouço? Se a encontrar fora da prisão, conseguirei reconhecê-la? E foi assim que encontrei a minha ideia para Foi Só um Acidente.
Nessa medida, este é um filme que reflecte uma experiência pessoal.
Não, não se trata se trata apenas da minha experiência pessoal. O que está em jogo é, sobretudo, a experiência de outras pessoas que estiveram na prisão, comigo, no mesmo espaço. Estiveram na prisão mais tempo do que eu, cinco anos, dez anos — contaram-me as suas histórias. Digamos que é uma experiência de reunião.
Que pessoas sofrem com essa experiência?
Quase todas as pessoas no Irão. Não quero dizer com isto que todas as pessoas, no plano individual, sofram directamente com essa experiência — pode ser alguém da família, um amigo, pode ser um vizinho que esteve na prisão por causa das suas ideias.
Considerando alguns dos seus filmes, tal como O Círculo (2000) ou Três Rostos (2018), somos levados a pensar que essa experiência é especialmente dura para as mulheres.
Quando digo que sou um cineasta que filma a sociedade, quero eu dizer que há determinadas limitações nessa sociedade. Assim, começo por falar do grupo de pessoas que são mais atingidas por essas limitações — e esse grupo são as mulheres. De qualquer modo, num filme como Três Rostos, tudo se passa entre mulheres e homens. De facto, não se trata de dizer para quem as coisas são mais duras — são coisas que se acumulam, numa estrutura que está a destruir as pessoas. Nos meus filmes, o importante é o factor humano.
Pensando na personagem central da sua primeira longa-metragem, O Balão Branco, em 1995 premiada em Cannes com a Câmara de Ouro, podemos perguntar: numa sociedade assim, que se passa com as crianças? Como aprendem a viver?
Lembro-me desse tempo: a situação era muito mais difícil do que é agora. Havia muita censura. Com frequência, os cineastas começavam a fazer cinema começando pelas crianças. Não quero com isto dizer que se tratava de fazer filmes para crianças, mas sim sobre crianças — os adultos falavam através da boca das crianças. Apresentar crianças nos nossos filmes era uma espécie de desculpa para escapar às limitações impostas pelo governo. A partir do meu terceiro filme [O Círculo], disse a mim próprio: as crianças já cresceram, que andam agora a fazer? Agora, com Foi Só um Acidente, são as mesmas crianças de há trinta anos.
Com todas essas experiências, podemos classificá-lo como um cineasta realista?
Sim, absolutamente. No caso de Foi Só um Acidente, quis que o espectador fosse capaz de aguentar, comigo, os últimos vinte minutos. Em alguns momentos, talvez possamos dizer que há um humor amargo, por exemplo quando surge a questão do suborno — essa é, aliás, uma característica dos governos em decomposição. Mas tudo isso desaparece nos últimos vinte minutos, há uma maior intensidade. Na última cena, ao ouvirem aquele som inquietante, os espectadores suspendem a respiração e são levados a perguntar: e agora, que vai acontecer?
Tendo em conta esse final de Foi Só um Acidente, faz algum sentido, para si, falar na possibilidade de fazer um outro filme que seja a continuação deste?
Não pensei nisso, mas habitualmente não gosto de sequelas.
* Recentemente, Jafar Panahi foi mais uma vez condenado, neste caso à revelia, pelas autoridades iranianas. Encontrava-se, na altura, nos EUA para participar na cerimónia dos Gotham Awards (prémios que distinguem a produção independente), onde o seu filme Foi Só um Acidente recebeu três distinções: realização, argumento original e filme internacional — eis o agradecimento de Panahi quando recebeu o prémio de realização.
Digamos, para simplificar, que é um dos grandes filmes de 2025: Na Linha da Frente— título original: Heldin ("heroína") — faz o retrato íntimo, quer dizer, tecido de delicadas intimidades, de um turno da noite num hospital suíço, tendo como pivot a personagem de uma enfermeira a lutar para não ser vencida pelas dramáticas exigências do seu labor.
Com a sublime Leonie Benesch no papel central (já vimos Oscars serem entregues por infinitamente menos...), o filme escrito e realizado por Petra Volpe renova as nossas esperanças num realismo à flor da pele. A saber: uma opção narrativa e uma postura moral capazes de resistir às chantagens "naturalistas" com que, todos os dias, a televisão procura entorpecer o nosso olhar e secar a nossa inteligência.
Lost in the Stars, poema de Maxwell Anderson, música de Kurt Weill, é uma daquelas canções que possui o equilíbrio de transparência e mistério que define um verdadeiro clássico — aqui na imaculada interpretação de Judy Garland, em 1964, numa edição de The Judy Garland Show.
Bedtime Story (singular) é, seguramente, a canção de Madonna sustentada pela produção tecnicamente mais sofisticada da sua coleção de telediscos. É também o emblema do álbum Bedtime Stories (plural), agora relançado em edição Deluxe — subtítulo The Untold Chapter, com o alinhamento original + uma série de remixes — para assinalar o seu 30º aniversário. Altura certa para revermos o dito teledisco, obra-prima assinada por Mark Romanek.
Denis Podalydès: onde está a psicologia do cancro?
O Último Suspiro, do francês Costa-Gavras, é um filme sobre o cancro, ou melhor, sobre a dificuldade de lidar com as incidências da doença e, nessa medida, sobre a infinita complexidade das vivências humanas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 novembro).
Estreado no Festival de San Sebastián de 2024, o mais recente filme de Costa-Gavras, O Último Suspiro envolve um desafio temático com que não é simples lidar. A saber: a sua personagem central, Fabrice Toussaint (Denis Podalydès), é um escritor e filósofo que, na sequência de uma ressonância magnética, fica a saber que tem um cancro... Não lhe é fácil, por isso, dialogar com o seu médico, Augustin Masset (Kad Merad). E tanto mais quanto, numa linguagem sincera e transparente, Augustin lhe faz ver que será preciso reflectir serenamente e tomar decisões concisas sobre os modos de lidar com a doença.
Evitemos, por isso, alimentar o mais pobre imaginário televisivo que, todos os dias, fere a nossa sensibilidade e tenta limitar a nossa capacidade de pensar. Não se trata de alimentar esse misto de paternalismo piedoso e cinismo mediático com que alguns responsáveis de “talk shows” se permitem explorar muitas formas de sofrimento humano (o mesmo se dirá da pornografia moral de certas rubricas sobre o “mundo do crime”). O filme de Costa-Gavras não é sobre o “cancro” como uma entidade abstracta, susceptível de ser reduzida a uma antologia maniqueísta de prós e contras. E também não pretende retratar “todas” as pessoas atingidas por alguma forma de cancro, como se fosse psicologicamente pertinente e filosoficamente inteligente alimentar a ilusão de que há respostas globais para um tão complexo fenómeno biológico e social.
Falar sobre o cancro
Falemos, por isso, de cinema. Como? Começando por parafrasear a forma como Gertrude Stein eternizou a transparência e o mistério de uma rosa, agora dizendo: um filme é um filme é um filme... Três vezes para estarmos seguros de não ceder a essa maldição cultural que faz com que os filmes (os livros, as canções, etc.) estejam a ser reduzidos à importância que se atribui aos seus “temas”, desse modo promovendo de forma despudorada as mais vergonhosas mediocridades artísticas.
Estamos perante uma narrativa sobre a passagem para o universo da palavra — da fascinante pluralidade das palavras. Costa-Gavras, também autor do argumento (a partir de um livro de Régis Debray e Claude Grange), escolhe como motor dramático o próprio diálogo Fabrice/Augustin. Com uma nuance a que não falta uma contagiante componente irónica: perante o medo e as dúvidas de Fabrice, Augustin sugere-lhe que ele o acompanhe nas visitas a outros pacientes com cancro.
O mínimo que se pode dizer dessa experiência é que, para lá da diversidade de manifestações cancerígenas que podem afectar um ser humano, os modos como cada paciente lida com a sua própria situação são infinitos — por vezes, é verdade, fascinantes. Assim acontece com a bem disposta Madame Léonie (Françoise Lebrun, lendária actriz de A Mãe e a Puta, o filme de 1973 realizado por Jean Eustache), ou ainda com Estrella (Ángela Molina), a paciente que dispensa um psicólogo, já que a sua crença lhe garante que o seu psicólogo “está lá em cima” — aliás, com o seu olhar, Fabrice tenta confirmar essa divina localização...
O Último Suspiro não é, por isso, um filme sobre a “boa maneira” de morrer com cancro. Não é sequer um filme em que a morte seja um ponto de fuga que mobilize todas as linhas dramáticas que o seu argumento coloca em jogo. Em boa verdade, é um filme sobre a “boa maneira” de viver, mesmo enfrentando o cancro. E tanto mais quanto Costa-Gavras nos convoca para um depurado registo realista em que a pertença de cada personagem a uma determinada matriz (profissional, institucional, etc.) não apaga, antes permite sublinhar, a sua irredutibilidade humana.
A dimensão política
Para quem conheça um pouco da filmografia de Costa-Gavras (francês, nascido na Grécia em 1933), o envolvente realismo de O Último Suspiro não será uma surpresa, mas não há dúvida que se demarca das ambiências dos seus filmes mais conhecidos. Penso, em particular, nos dramas políticos que o projectaram a nível internacional: Z – A Orgia do Poder (1969), A Confissão (1970) e Estado de Sítio (1972), todos protagonizados por Yves Montand. Ou ainda no recente Comportem-se como Adultos (2019), revisitando a experiência de Yanis Varoufakis, em 2015, na atribulada governação da Grécia.
Digamos, para simplificar, que O Último Suspiro está longe de representar uma “viragem” na caminhada cinematográfica de Costa-Gavras. Afinal, para ele, como sempre, é na vida de cada indivíduo que se enraíza a dimensão política do que somos ou queremos ser — na vida e, se for caso disso, também na morte.
Por certo "acelerando" a velocidade a que, tradicionalmente, é interpretado o Prelúdio em Dó Maior, BWV 846, o piano de Alice Sara Ott leva-nos a reencontrar Bach através de uma memória ambivalente do cravo — arriscado e fascinante.