domingo, dezembro 07, 2025

O Natal da família Wainwright

Não apenas Rufus Wainwright, mas também as irmãs Martha e Lucy, e o pai Loudon Wainwright III — The Wainwrights estiveram no programa de Jimmy Kimmel, interpretando If We Make It Through December, um clássico de Natal, da colheita de 1973, composto e interpretado por Merle Haggard and the Strangers.
 

Jafar Panahi:
"Nos meus filmes, o importante é o factor humano"

[ FOTO: Majid Saeedi ]

Consagrado com a Palma de Ouro de Cannes, Foi Só um Acidente é mais uma notável proeza do iraniano Jafar Panahi, um exemplo modelar do trabalho de um cineasta que não desiste de filmar a sociedade do seu país — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (12 novembro).

As histórias que o cineasta iraniano Jafar Panahi conta nos seus filmes são indissociáveis das suas vivências, ou melhor, daquilo que ele gosta de classificar como uma inspiração vinda da sociedade. Assim acontece em Foi Só um Acidente, consagrado em maio com a Palma de Ouro do Festival de Cannes. O implacável desenvolvimento do seu drama envolve um homem que, ao ouvir um determinado som, julga detectar a presença daquele que o torturou na prisão — um som a que, por assim dizer, falta uma imagem. Daí nasce uma tensão visceralmente cinematográfica (imagem/som) que reflecte as convulsões de um espaço social dividido por muitos muros, alguns metafóricos, outros tragicamente realistas. Por alguma razão, Panahi aceita que o classifiquemos, precisamente, como um cineasta realista.

Há uma premissa dramática muito especial a partir da qual se constrói um filme como Foi Só um Acidente. Como surgiu essa premissa e de que modo, a partir daí, desenvolveu o argumento?
Sou um realizador que faz filmes que têm que ver com a sociedade. Nesse sentido, o que me inspira é a própria sociedade, o lugar onde vivo, as pessoas à minha volta — pessoas comuns, mesmo quando se trata apenas de ir ao fundo da rua para comprar alguma coisa na mercearia. Mas podemos pensar noutro contexto, por exemplo convivendo durante alguns meses com pessoas que falam de coisas que são novas. Quando falamos com essas pessoas, não é para encontrar uma ideia para fazer um filme — é apenas uma conversa de fim do dia. O certo é que quando saímos desse contexto, fica a vontade de regressar. E vemos um muro muito longo e alto — estamos de fora, mas essas pessoas ainda estão lá dentro. Não estamos a pensar fazer um filme, mas há um peso que ficou connosco e perguntamos: que posso eu fazer? Talvez possa fazer um filme sobre tudo isso. Como posso começar?

Que muro é esse?
É um muro de uma prisão — está entre nós, que permanecemos de fora, e as pessoas que ainda estão lá dentro. É um muro que nos separa, aprisionando aqueles que serão, talvez, os melhores do nosso país, especialmente os mais jovens. É um muro que alguns governos constroem para manter as pessoas separadas daquilo em que realmente acreditam. Ora, é a altura para fazer alguma coisa pelas pessoas que estão do outro lado do muro. Por isso, é preciso fazer um filme sobre essas pessoas. Como começar? É preciso começar pela nossa própria experiência. Que aconteceu quando estávamos a ser investigados e interrogados? Ao sermos interrogados, éramos colocados em frente a uma parede, com os olhos tapados, davam-nos papel e uma caneta para escrevermos as nossas respostas. A pessoa que me interrogava estava atrás de mim — e eu pensava: qual será o aspecto desta pessoa, poderei reconhecê-la apenas pelo que ouço? Se a encontrar fora da prisão, conseguirei reconhecê-la? E foi assim que encontrei a minha ideia para Foi Só um Acidente.

Nessa medida, este é um filme que reflecte uma experiência pessoal.
Não, não se trata se trata apenas da minha experiência pessoal. O que está em jogo é, sobretudo, a experiência de outras pessoas que estiveram na prisão, comigo, no mesmo espaço. Estiveram na prisão mais tempo do que eu, cinco anos, dez anos — contaram-me as suas histórias. Digamos que é uma experiência de reunião.

Que pessoas sofrem com essa experiência?
Quase todas as pessoas no Irão. Não quero dizer com isto que todas as pessoas, no plano individual, sofram directamente com essa experiência — pode ser alguém da família, um amigo, pode ser um vizinho que esteve na prisão por causa das suas ideias.

Considerando alguns dos seus filmes, tal como O Círculo (2000) ou Três Rostos (2018), somos levados a pensar que essa experiência é especialmente dura para as mulheres.
Quando digo que sou um cineasta que filma a sociedade, quero eu dizer que há determinadas limitações nessa sociedade. Assim, começo por falar do grupo de pessoas que são mais atingidas por essas limitações — e esse grupo são as mulheres. De qualquer modo, num filme como Três Rostos, tudo se passa entre mulheres e homens. De facto, não se trata de dizer para quem as coisas são mais duras — são coisas que se acumulam, numa estrutura que está a destruir as pessoas. Nos meus filmes, o importante é o factor humano.

Pensando na personagem central da sua primeira longa-metragem, O Balão Branco, em 1995 premiada em Cannes com a Câmara de Ouro, podemos perguntar: numa sociedade assim, que se passa com as crianças? Como aprendem a viver?
Lembro-me desse tempo: a situação era muito mais difícil do que é agora. Havia muita censura. Com frequência, os cineastas começavam a fazer cinema começando pelas crianças. Não quero com isto dizer que se tratava de fazer filmes para crianças, mas sim sobre crianças — os adultos falavam através da boca das crianças. Apresentar crianças nos nossos filmes era uma espécie de desculpa para escapar às limitações impostas pelo governo. A partir do meu terceiro filme [O Círculo], disse a mim próprio: as crianças já cresceram, que andam agora a fazer? Agora, com Foi Só um Acidente, são as mesmas crianças de há trinta anos.

Com todas essas experiências, podemos classificá-lo como um cineasta realista?
Sim, absolutamente. No caso de Foi Só um Acidente, quis que o espectador fosse capaz de aguentar, comigo, os últimos vinte minutos. Em alguns momentos, talvez possamos dizer que há um humor amargo, por exemplo quando surge a questão do suborno — essa é, aliás, uma característica dos governos em decomposição. Mas tudo isso desaparece nos últimos vinte minutos, há uma maior intensidade. Na última cena, ao ouvirem aquele som inquietante, os espectadores suspendem a respiração e são levados a perguntar: e agora, que vai acontecer?

Tendo em conta esse final de Foi Só um Acidente, faz algum sentido, para si, falar na possibilidade de fazer um outro filme que seja a continuação deste?
Não pensei nisso, mas habitualmente não gosto de sequelas.


>>> Jafar Panahi na Wikipedia.
   
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* Recentemente, Jafar Panahi foi mais uma vez condenado, neste caso à revelia, pelas autoridades iranianas. Encontrava-se, na altura, nos EUA para participar na cerimónia dos Gotham Awards (prémios que distinguem a produção independente), onde o seu filme Foi Só um Acidente recebeu três distinções: realização, argumento original e filme internacional — eis o agradecimento de Panahi quando recebeu o prémio de realização.

Memórias de 2025
* SOUND + VISION Magazine / FNAC [20 dez.]

A próxima sessão do Sound+Vision Magazine terá lugar a 20 de dezembro (17h00), propondo um inventário de algumas memórias (musicais, cinematográficas) que marcaram o ano de 2025 — como habitualmente, na FNAC Chiado.

sábado, dezembro 06, 2025

Na Linha da Frente 💙💙💙💙💙

Digamos, para simplificar, que é um dos grandes filmes de 2025: Na Linha da Frente — título original: Heldin ("heroína") — faz o retrato íntimo, quer dizer, tecido de delicadas intimidades, de um turno da noite num hospital suíço, tendo como pivot a personagem de uma enfermeira a lutar para não ser vencida pelas dramáticas exigências do seu labor.
Com a sublime Leonie Benesch no papel central (já vimos Oscars serem entregues por infinitamente menos...), o filme escrito e realizado por Petra Volpe renova as nossas esperanças num realismo à flor da pele. A saber: uma opção narrativa e uma postura moral capazes de resistir às chantagens "naturalistas" com que, todos os dias, a televisão procura entorpecer o nosso olhar e secar a nossa inteligência.

Judy Garland, Lost in the Stars

Lost in the Stars, poema de Maxwell Anderson, música de Kurt Weill, é uma daquelas canções que possui o equilíbrio de transparência e mistério que define um verdadeiro clássico — aqui na imaculada interpretação de Judy Garland, em 1964, numa edição de The Judy Garland Show.

sexta-feira, dezembro 05, 2025

terça-feira, dezembro 02, 2025

Bedtime story & stories

Bedtime Story (singular) é, seguramente, a canção de Madonna sustentada pela produção tecnicamente mais sofisticada da sua coleção de telediscos. É também o emblema do álbum Bedtime Stories (plural), agora relançado em edição Deluxe — subtítulo The Untold Chapter, com o alinhamento original + uma série de remixes — para assinalar o seu 30º aniversário. Altura certa para revermos o dito teledisco, obra-prima assinada por Mark Romanek.
 

O Último Suspiro
ou como falar sobre o cancro?

Denis Podalydès: onde está a psicologia do cancro?

O Último Suspiro, do francês Costa-Gavras, é um filme sobre o cancro, ou melhor, sobre a dificuldade de lidar com as incidências da doença e, nessa medida, sobre a infinita complexidade das vivências humanas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 novembro).

Estreado no Festival de San Sebastián de 2024, o mais recente filme de Costa-Gavras, O Último Suspiro envolve um desafio temático com que não é simples lidar. A saber: a sua personagem central, Fabrice Toussaint (Denis Podalydès), é um escritor e filósofo que, na sequência de uma ressonância magnética, fica a saber que tem um cancro... Não lhe é fácil, por isso, dialogar com o seu médico, Augustin Masset (Kad Merad). E tanto mais quanto, numa linguagem sincera e transparente, Augustin lhe faz ver que será preciso reflectir serenamente e tomar decisões concisas sobre os modos de lidar com a doença.
Evitemos, por isso, alimentar o mais pobre imaginário televisivo que, todos os dias, fere a nossa sensibilidade e tenta limitar a nossa capacidade de pensar. Não se trata de alimentar esse misto de paternalismo piedoso e cinismo mediático com que alguns responsáveis de “talk shows” se permitem explorar muitas formas de sofrimento humano (o mesmo se dirá da pornografia moral de certas rubricas sobre o “mundo do crime”). O filme de Costa-Gavras não é sobre o “cancro” como uma entidade abstracta, susceptível de ser reduzida a uma antologia maniqueísta de prós e contras. E também não pretende retratar “todas” as pessoas atingidas por alguma forma de cancro, como se fosse psicologicamente pertinente e filosoficamente inteligente alimentar a ilusão de que há respostas globais para um tão complexo fenómeno biológico e social.

Falar sobre o cancro

Falemos, por isso, de cinema. Como? Começando por parafrasear a forma como Gertrude Stein eternizou a transparência e o mistério de uma rosa, agora dizendo: um filme é um filme é um filme... Três vezes para estarmos seguros de não ceder a essa maldição cultural que faz com que os filmes (os livros, as canções, etc.) estejam a ser reduzidos à importância que se atribui aos seus “temas”, desse modo promovendo de forma despudorada as mais vergonhosas mediocridades artísticas.
Estamos perante uma narrativa sobre a passagem para o universo da palavra — da fascinante pluralidade das palavras. Costa-Gavras, também autor do argumento (a partir de um livro de Régis Debray e Claude Grange), escolhe como motor dramático o próprio diálogo Fabrice/Augustin. Com uma nuance a que não falta uma contagiante componente irónica: perante o medo e as dúvidas de Fabrice, Augustin sugere-lhe que ele o acompanhe nas visitas a outros pacientes com cancro.
O mínimo que se pode dizer dessa experiência é que, para lá da diversidade de manifestações cancerígenas que podem afectar um ser humano, os modos como cada paciente lida com a sua própria situação são infinitos — por vezes, é verdade, fascinantes. Assim acontece com a bem disposta Madame Léonie (Françoise Lebrun, lendária actriz de A Mãe e a Puta, o filme de 1973 realizado por Jean Eustache), ou ainda com Estrella (Ángela Molina), a paciente que dispensa um psicólogo, já que a sua crença lhe garante que o seu psicólogo “está lá em cima” — aliás, com o seu olhar, Fabrice tenta confirmar essa divina localização...
O Último Suspiro não é, por isso, um filme sobre a “boa maneira” de morrer com cancro. Não é sequer um filme em que a morte seja um ponto de fuga que mobilize todas as linhas dramáticas que o seu argumento coloca em jogo. Em boa verdade, é um filme sobre a “boa maneira” de viver, mesmo enfrentando o cancro. E tanto mais quanto Costa-Gavras nos convoca para um depurado registo realista em que a pertença de cada personagem a uma determinada matriz (profissional, institucional, etc.) não apaga, antes permite sublinhar, a sua irredutibilidade humana.

A dimensão política

Para quem conheça um pouco da filmografia de Costa-Gavras (francês, nascido na Grécia em 1933), o envolvente realismo de O Último Suspiro não será uma surpresa, mas não há dúvida que se demarca das ambiências dos seus filmes mais conhecidos. Penso, em particular, nos dramas políticos que o projectaram a nível internacional: Z – A Orgia do Poder (1969), A Confissão (1970) e Estado de Sítio (1972), todos protagonizados por Yves Montand. Ou ainda no recente Comportem-se como Adultos (2019), revisitando a experiência de Yanis Varoufakis, em 2015, na atribulada governação da Grécia.
Digamos, para simplificar, que O Último Suspiro está longe de representar uma “viragem” na caminhada cinematográfica de Costa-Gavras. Afinal, para ele, como sempre, é na vida de cada indivíduo que se enraíza a dimensão política do que somos ou queremos ser — na vida e, se for caso disso, também na morte.

segunda-feira, dezembro 01, 2025

Bach / Alice Sara Ott

Por certo "acelerando" a velocidade a que, tradicionalmente, é interpretado o Prelúdio em Dó Maior, BWV 846, o piano de Alice Sara Ott leva-nos a reencontrar Bach através de uma memória ambivalente do cravo — arriscado e fascinante.
 

domingo, novembro 30, 2025

Kleber Mendonça Filho, na primeira pessoa

[ FOTO: Reinaldo Rodrigues / DN ]

O realizador brasileiro Kleber Mendonça Filho continua a evocar histórias e fantasmas do seu país. Premado no Festival de Cannes, o seu filme mais recente, O Agente Secreto é o candidato do Brasil a uma nomeação para o Oscar de melhor filme internacional — esta entrevista, realizada em Lisboa (24 julho), foi publicada no Diário de Notícias (5 novembro).

No passado mês de maio, O Agente Secreto foi um dos grandes acontecimentos em Cannes, tendo recebido dois dos prémios mais importantes do festival, atribuídos a Kleber Mendonça Filho (realização) e Wagner Moura (interpretação). Evocando histórias vividas durante a ditadura militar, Kleber Mendonça Filho propõe um labirinto de factos e emoções em que as convulsões políticas se cruzam com memórias indissociáveis da sua própria família — o resultado envolve-nos através de uma teia dramática que nos remete para a discussão do que, nestes tempos de saturação televisiva, é ou pode ser um certo realismo histórico.
Com chancela da Nitrato Filmes, distribuidora que se tem empenhado na divulgação da produção cinematográfica brasileira, o filme chega amanhã [6 novembro] às salas de todo o país, integrando também a homenagem a Wagner Moura organizada pelo LEFFEST — o actor estará presente na sessão de O Agente Secreto marcada sexta-feira [7 novembro], no Cinema Nimas.


A acção de O Agente Secreto decorre em 1977, ou seja, o ano em que celebrou o seu nono aniversário. Ora, mesmo sem procurarmos qualquer tipo de aproximação ou coincidência com o protagonista do filme, será que, para si, faz sentido dizer que no filme há alguma componente autobiográfica?
Creio que há várias maneiras de responder a essa pergunta. Por exemplo, gosto muito do filme Zodíaco [2007], de David Fincher. Claro que não acho que Fincher tenha qualquer relação com a história daquele assassino. O certo é que, além de ser um “thriller” sobre um “serial killer”, há nele uma força que resulta do facto de ser uma reconstituição da cidade onde, em criança, o próprio Fincher viveu — vi o filme pela primeira vez em Cannes, no Auditório Lumière, já lá vão 18 anos, e a densidade dos detalhes impressionou-me imenso. Quis que O Agente Secreto tivesse também esse tipo de densidade: não é sobre nenhum facto histórico, é antes sobre a recordação muito viva de uma época.

Época que, portanto, o marcou de forma especial...
Na primeira entrevista que dei para o dossier de imprensa do filme, fui muito sincero quando disse que essa época me marcou porque aconteceu uma crise de saúde da minha mãe. Não quer dizer que tenha uma memória prodigiosa e me lembre de tudo de 1977, 78, 79... Lembro-me por causa dessa crise e também porque, na altura, o meu tio mais novo me levava ao cinema, com o meu irmão, para nos tirar da realidade da casa — guardei uma impressão muito forte dessas idas ao cinema. Daí que tivesse uma base sentimental para escrever o argumento de O Agente Secreto. O resultado é um quebra-cabeças que vem de histórias que ouvi contadas pela minha mãe, pelos meus tios e o meu pai... Sem esquecer que, desde muito criança, adorava ler os jornais, e não só pelo cinema (porque já era um jovem cinéfilo), também pela parte literária, ao domingo, e pela curiosidade mórbida de ver as fotos da página policial que, em boa verdade, eram muito mais francas do que são hoje. Lembro-me de ter ficado muito impressionado com a cobertura fotográfica do sequestro de Aldo Moro, em Itália. Hoje existe uma série de protocolos sobre como mostrar a vítima de um assassinato ou um atropelamento — naquela época, era tudo muito franco, como a foto que aparece no final do meu filme.

Como é que tudo isso marcou o trabalho de “reconstituição” histórica?
Tenho agora 56 anos. Quando envelhecemos, é como se conseguíssemos ver a história a acontecer à nossa frente. Isso vai desde a chegada de uma nova tecnologia, até ao uso do papel e ao facto de usarmos cada vez menos o papel. Ou ainda as mudanças políticas no meu país: a forma como hoje recuperámos um certo sentido de democracia, quando há dez anos estávamos num charco de autoritarismo... Vem daí uma base histórica para perceber o mundo, associado à experiência da minha própria cidade — sou do Recife e gosto muito do Recife.

Wagner Moura e Kleber Mendonça Filho na rodagem de O Agente Secreto

Qual a importância da escolha do formato largo das imagens (uma variação do clássico CinemaScope)?
Não terá sido uma escolha cartesiana que eu possa explicar... Por exemplo, uma escolha desse género foi feita em Parque Jurássico [1993], de Steven Spielberg, um belo filme de aventuras: o filme foi feito num determinado formato (o chamado 1x1.85) porque era nesse formato que os dinossauros “encaixavam” melhor — é uma boa explicação. Ora, não tenho uma explicação desse tipo para O Agente Secreto. É certo que o meu desejo de fotografar passaria sempre pelo formato anamórfico (1x2,40), ou seja, o Panavision. É um formato ligado à minha formação como cinéfilo e cineasta, sobretudo através de muitas produções dos anos 1970/80 que vinham dos EUA — filmes de John Carpenter, Brian De Palma e Robert Altman, ou ainda os Encontros Imediatos do Terceiro Grau, de Spielberg.

E de onde vem Marcelo, a personagem de Wagner Moura, que afinal se chama Armando? Ou o Armando que responde pelo nome de Marcelo? Mesmo não conhecendo em pormenor a história do Brasil, dá para perceber que teve vivências de carácter político e, por isso mesmo, em plena ditadura, chega ao Recife para se esconder, dir-se-ia para se refugiar na sua própria cidade.
Tudo começou com as histórias que os mais velhos me contaram e as muitas coisas que aconteceram ou poderiam ter acontecido. Acima de tudo, queria um herói clássico, de enorme empatia, grande carisma, que poderia ser interpretado por James Stewart — ou pensando em termos dos anos 70, por Jack Nicholson, como em Profissão: Repórter [Michelangelo Antonioni, 1975]. O Wagner é capaz de gerar essa empatia. Queria que o filme ilustrasse aquele ditado soviético: “Nunca uma boa acção ficará sem punição”. Tudo o que Marcelo fez está certo e correcto, e ele vai pagar pelos seus pecados — é essa a lógica de uma ditadura.

Seja como for, um dos trunfos mais fortes do filme decorre do facto dessa empatia não poder ser reduzida a uma identificação política.
Não, não pode. Mas hoje se você diz “eu acredito nas vacinas”, isso deveria ser apenas uma afirmação científica, baseada em pesquisas, mas pode ser transformado num discurso político. Alguém dirá “você é um liberal, é de esquerda” — mas não, “só quero que os meus filhos sejam vacinados”. A ideia de que a personagem está cheia de razão, sendo esse precisamente o seu problema, é algo que acho muito interessante num ambiente político autoritário.

Como foi o trabalho de composição de Wagner Moura?
Ele teve muito em conta algum paralelismo com o O Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen, uma peça que representou recentemente no Brasil [o mesmo espectáculo virá a Lisboa, ao CCB, em julho de 2026]. Queria que fosse, realmente, um herói clássico, embora diferente do herói clássico americano — ele não anda armado. Aliás, isso é discutido no filme — “Tem que andar armado, impõe respeito...” —, o que, além do mais, é uma questão que, nos últimos dez anos, voltou ao Brasil.
[ FOTO: Vítor Jucá ]

Mas será que faz sentido dizer que o filme é uma metáfora do Brasil contemporâneo?
Foi ingenuidade minha. Quando estava a escrever o argumento, pensei que o facto de a acção se passar em 1977 faria de imediato com que as pessoas “comprassem” a ideia de que era, realmente, em 1977… O certo é que a primeira vez que mostrei aos meus amigos, disseram logo: “Mas o filme é sobre hoje!” Um fracasso! [riso]. A questão é que voltaram ao Brasil algumas discussões arcaicas dos anos 1990/2000 — como brasileiro, isso choca-me muito.

Pode dar um exemplo?
Injúrias, discursos misóginos, homofóbicos, racistas e até preconceitos em relação ao Nordeste...

Essa capacidade de revisitar o passado, afinal fazendo-nos falar também do presente, pode ser encarada também como uma herança, não estética, mas simbólica, do Cinema Novo brasileiro?
Não sei. Nos meus 20 anos, como jovem cinéfilo, aspirante a cineasta, irritava-me um pouco com a presença constante do Cinema Novo como uma espécie de “medida” para tudo o que se fazia no cinema brasileiro. Nos anos 90, quando eu estava a começar, qualquer coisa que se fizesse era colocada “contra” algum filme do Cinema Novo. Agora, quando se fala disso, acho que vejo uma beleza maior, tudo passou a ser visto com mais naturalidade.

Podemos, talvez, recordar a obra de Glauber Rocha, pensando, por exemplo, em António das Mortes [1969]: é um filme com uma dimensão política contaminada por muitas formas de misticismo. Ora, mesmo não esquecendo as muitas diferenças, talvez se possa dizer que também sentimos isso em O Agente Secreto.
Sim, mas apenas porque, não sendo eu uma pessoa religiosa, acho incrível o suco de sentimentos não cartesianos que conduzem a vida no Brasil — por exemplo, há ateus que, no dia 31 de dezembro, se vestem todos de branco para passar o ano a dar pulos nas ondas do mar, em homenagem a Iemanjá... E não pertencem, obviamente, a um qualquer bando. É uma coisa nacional. Embora seja complicado e envolva outras questões, é quase como vestir a camisola amarela num jogo da seleção brasileira — vai além da ideia de patriota, funciona como um uniforme nacional. Veja-se a Dona Sebastiana [Tânia Maria]: ela recebe a personagem do Wagner com uma limpeza espiritual do apartamento — passou sal grosso, o apartamento está limpo. E não é limpo de poeira, é limpo espiritualmente. O Brasil possui uma força poética feita dessa mistura de sentimentos e espiritualidade. Afinal, queremos entender o que somos. Para mim, O Agente Secreto é muito sobre isso, sobre alguém que não tem a certeza daquilo que é...

Nesse sentido, a personagem do Wagner não se esgota num discurso meramente militante.
Não, é um facto. Trago comigo o suficiente para perceber que também faço parte disso, mesmo não perguntando como — para mim, isso é fascinante no Brasil. A minha companheira é francesa e sempre que, num restaurante, ela coloca a bolsa no chão, eu pego imediatamente nela e coloco-a numa cadeira. Não se pode colocar a bolsa no chão porque, no Brasil, significa azar — não me pergunte porque é que eu faço, mas eu faço.