segunda-feira, novembro 04, 2024

O esplendor de Lady Gaga

Sob o signo de Joker

A composição de Lady Gaga como Harley Quinn, contracenando com Joaquin Phoenix, em Joker: Loucura a Dois, é a prova muito real de um talento que passa pelas canções, mas não se esgota na música: ela é também uma verdadeira estrela de cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 outubro).

O novo álbum de Lady Gaga, lançado a 27 de setembro, é um belo reflexo das singularidades do seu imenso talento. Chama-se Harlequin e, além de dois temas originais, apresenta como matéria principal as canções da banda sonora de Joker: Loucura a Dois. Não exactamente tal como se ouvem no filme, mas trabalhadas em estúdio para recriar algumas memórias clássicas do cancioneiro made in USA.
No seu alinhamento encontramos, por exemplo, Good Morning, tema interpretado por Judy Garland e Mickey Rooney em Babes in Arms/De Braço Dado (1939), de Busby Berkeley, porventura mais conhecido pela sua utilização em Serenata à Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen. Ou ainda That’s Entertainment, verdadeiro hino do espectáculo segundo Hollywood, proveniente de The Band Wagon/A Roda da Fortuna (1953), de Vincente Minnelli — agora, na cena da prisão em que Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) e os outros reclusos assistem a um filme através de um velho projector de 16mm, esse filme é, justamente, The Band Wagon, na cena em que Fred Astaire, Jack Buchanan, Nanette Fabray e Oscar Levant cantam That’s Entertainment.
Quer isto dizer que Harlequin reafirma a capacidade de Lady Gaga revisitar e reinventar temas viscerais do imaginário americano do espectáculo, prolongando a lógica criativa de Cheek to Cheek (2014) e Love for Sale (2021), os dois belíssimos álbuns que gravou com Tony Bennett. Tal princípio artístico duplica-se na notável composição de Harley Quinn, muito para lá de qualquer função de mero “apoio” (“supporting actress”, diz o cânone) ao Joker que Phoenix refaz com inexcedível brilhantismo.
Lady Gaga distingue-se pelo esplendor das verdadeiras estrelas. O filme que a consagrou — Assim Nasce uma Estrela (2018), de e com Bradley Cooper — tem mesmo um título que se adequa tanto à sua personagem feminina como à respectiva intérprete. Aliás, depois desse filme e antes do novo Joker, vimo-la numa realização de Ridley Scott, Casa Gucci (2021), em que a sua composição, longe do registo melodramático de Assim Nasce uma Estrela, a revelava num sofisticado modelo de farsa, algures entre a alegria cómica e o artifício operático.
Semelhante versatilidade está também bem expressa na sua já muito considerável colecção de telediscos, recriando referências em que se cruzam heranças de cinema, televisão e banda desenhada. Lembremos o exemplo exuberante de Telephone, canção do álbum The Fame Monster (2009) interpretada em dueto com Beyoncé [video]. O respectivo teledisco possui a energia formal (e as cores!) de um objecto eminentemente pop encenado com o misto de provocação e irrisão que é a “assinatura” do seu realizador, o sueco Jonas Akerlund. Tendo em conta que a videografia de Akerlund inclui proezas como Ray of Light (1998), de Madonna, o menos que se pode dizer é que Lady Gaga conhece bem a sua árvore genealógica.


domingo, novembro 03, 2024

sexta-feira, novembro 01, 2024

Patti Smith / Halloween

Apesar do barulho dos vizinhos, ou precisamente por causa disso, Patti Smith celebra o Halloween — é mais um video no seu espaço na plataforma Substack, desta vez na companhia do seu pequeno morcego...

Happy Halloween by Patti Smith

Things are Batty

Read on Substack

quinta-feira, outubro 31, 2024

Amadeo: memórias de um exílio português

Os Galgos (1911), de Amadeo de Souza-Cardoso (Centro de Arte Moderna/Fundação Gulbenkian)

Amadeo, o livro de Mário Cláudio sobre Amadeo de Souza-Cardoso, é um notável exercício literário sobre uma figura central do modernismo português; foi agora reeditado, 40 anos depois de ter ganho o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 outubro).
 
De que falamos quando falamos de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918)? O seu lugar emblemático no panorama do modernismo português está longe de o reduzir a mero “símbolo” de um movimento: o seu trabalho reflecte uma elaborada abertura às convulsões artísticas do seu tempo, incluindo o cubismo e o futurismo, consolidando-se numa obra multifacetada capaz de transcender os limites de qualquer época. A reedição do romance Amadeo, de Mário Cláudio (com chancela da Dom Quixote), assinalando o seu 40º aniversário, aí está como testemunho eloquente de tal pluralidade histórica e, obviamente, também da sua transfiguração literária.
Estamos perante um livro fascinante, consagrado em 1984 com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. E se é verdade que o podemos definir como “romance biográfico”, não é menos verdade que tal classificação não deve ser separada da consciência estética, certamente pedagógica, de um labor que desafia, não apenas as fronteiras da escrita romanesca, mas também as regras tradicionais da abordagem biográfica.
No texto de apresentação da nova edição, Carlos Reis enaltece tal dinâmica, começando por questionar se esta é uma “biografia induzida pelo título”, um “diário completado por uma investigação biográfica”, um “ensaio balizado por eventos históricos”, ou ainda um romance capaz de subverter os “protocolos de género”. A resposta é “um pouco de tudo isso”, até porque se trata de enfrentar “questões que o tempo não dissolveu”.
Que questões são essas? Decorrem do misto de transparência e mistério que transforma o artista nessa “entidade” que existe por inteiro na sua obra, ao mesmo tempo que a obra se impõe como um corpo autónomo, capaz de interrogar o tempo e os lugares em que foi gerada. A esse propósito, importa lembrar que o escritor iniciava com Amadeo um conjunto de ficções biográficas (a expressão talvez seja mais sugestiva do que “biografias ficcionadas”) que viria a receber a designação de “Trilogia da Mão” — completaram-na Guilhermina (1986), sobre a violoncelista Guilhermina Suggia, e Rosa (1988), evocando a popular ceramista Rosa Ramalho.
Há um ziguezague biográfico que não é estranho a algum “suspense” (com o seu quê de cinematográfico). Quem está a conduzir a narrativa? Quem trabalha num romance que poderá chamar-se Amadeo? E quem descreve tudo isso, criando um livro-espelho do próprio livro que estamos a ler? Muito cedo ficamos a conhecer um investigador (“considera-se um biógrafo”) que “reúne documentos recentes, ouve quem ouviu do homem, acrescenta a tudo isso estâncias da própria existência. Este meu Tio Papi pretende justificar-se. A vida apenas se lhe torna inteligível na vida de outrem, e é isso quase tudo quanto o move.” Daí também a expressão que, um pouco mais à frente, Mário Cláudio aplica à aprendizagem do seu Amadeo. A saber: ele “aprendia a ser-se”.

Museu
Entre Manhufe e Paris

Entre Manhufe, terra natal no município de Amarante, e a perturbante sedução de Paris (“um quebra-cabeças de persistência e de folia”), nasce, assim, um labirinto de vivências, umas vividas, outras imaginadas, de que a pintura será a ilustração e a vertiginosa transfiguração.
“É uma longa maldição o exílio português”, lê-se na pág. 98 desta nova edição. Como se Amadeo, o artista revisitado como personagem de romance, estivesse condenado a existir sempre dividido entre a racionalidade das origens e a liberdade animal da criação. Reflexos desse assombramento podem encontrar-se na polémica que o romance suscitou em 1984, ao ser distinguido pela APE.
Nas páginas finais, há uma coleção de anexos que, depois de algumas páginas do original manuscrito, reproduzem artigos de várias publicações que, além dos textos críticos, nos permitem revisitar momentos fundamentais daquela polémica. É pena que as reproduções, de fraca qualidade técnica, reduzam as medidas dos originais, em vários casos tornando a leitura praticamente impossível. Nada disso diminui a importância desta reedição de Amadeo (com texto impresso num azul cúmplice do universo do pintor), até porque fica a sugestão de que, há 40 anos, um romance podia suscitar tanto interesse mediático quanto a transferência de um treinador de futebol.

terça-feira, outubro 29, 2024

Em tempo real

Metropolis (1927): a tragédia do trabalho e do tempo

Nos ecrãs caseiros, o directo televisivo passou a ser o retrato simplista das nossas vivências sociais — ete texto foi publicado no Diário de Notícias (1 setembro).

Cada vez que ouço um leitor de notícias televisivas, ou um dos seus repórteres, a proclamar que aquilo que nos está a ser mostrado acontece “em tempo real”, sinto vontade de lhes perguntar: quando é que o tempo é irreal?
Meio século depois do 25 de abril, a democracia gerou este invencível tabu: não se fazem perguntas sobre o dia a dia na televisão, não se discutem as suas linguagens e os respectivos efeitos sociais. Para lá de muitos contrastes interiores (por vezes fascinantes, não é isso que está em causa), a paisagem televisiva impôs — democraticamente, sem dúvida — uma cultura feita de avalanches de novelas, futebol e Reality TV. A reflexão sobre o tratamento do tempo esbarra, assim, na mesma pueril vulgaridade com que, noutro domínio (mas talvez seja o mesmo…), continuamos a usar a expressão “sexo explícito”, também sem perguntar, por exemplo, que qualidades reconhecemos no “sexo implícito” das telenovelas.
Nada disso interessa os regentes do nosso imaginário audiovisual, quase todos empenhados na mesma tarefa ideológica: garantir que as linguagens do pequeno ecrã não possam ser assunto de reflexão, consagrando-as como produto de um “naturalismo” sem alternativa. Daí o simplismo da expressão “em tempo real” — estar em tempo real seria o triunfo de um qualquer directo televisivo.
O directo televisivo passou mesmo a ser aplicado como apoteose do próprio “conceito” de televisão. Todos os dias, nas televisões de todo o mundo, há exemplos de “enviados especiais” a muitos milhares de quilómetros de distância, protagonizando directos em que se limitam a repetir as mesmas informações que ouvimos pela boca do “pivot” em estúdio. Porquê? Sobretudo: para quê? Para os vermos num cenário alternativo… em tempo real.
Há outra maneira de dizer isto, perversamente marxista nas suas raízes, ainda que as esquerdas tenham desistido de enfrentar a sua complexidade, enquanto as direitas, heroicamente, se dão ao luxo de nunca terem pensado no assunto. É uma maneira que decorre da lógica dominante dos mercados: o tempo, sobretudo se for possível colar-lhe o adjectivo “real”, é uma mercadoria altamente rentável. Veja-se o futebol: pagamos quantias obscenas para ver os jogos em directo porque, em boa verdade, o “tempo real” é, neste caso, de modo muito literal, uma insubstituível mais-valia.
Para mal dos nossos pecados, o tempo obstina-se em ser sempre visceralmente real. Porquê? Porque o tempo de um desastre tratado em apocalípticas horas de imagens e palavras redundantes é tão real para todos nós, consumidores, quanto o tempo do pesadelo mais perturbante é real para o seu incauto sonhador.
Não há maneira de “irrealizar” o tempo porque também não há maneira de dele sair. Quem gosta de cinema, sabe isso: a vertigem de uma comédia burlesca de Woody Allen ou uma aventura galáctica filmada por Stanley Kubrick são o que são porque acontecem no interior de uma duração temporal da qual não há saída possível — mesmo a ficção mais delirante partilha connosco o tempo de uma experiência inevitavelmente real.
Recordemos o exemplo modelar do clássico mudo Metropolis (1927), de Fritz Lang: as barreiras materiais e simbólicas que separam operários e patrões são, certamente, evidentes, mas se tais barreiras alimentam as convulsões da tragédia, isso decorre do carácter inelutável do tempo em que todos existem e que, de alguma maneira, partilham — sem esquecer que, no filme, os relógios têm mostradores de 10 horas, a duração de um turno de trabalho.
Ainda que através de componentes muito diferentes, comunismo e catolicismo pontuaram o século XX com a crença num “além” em que tudo se harmonizaria — um outro tempo, portanto. As respectivas crises contemporâneas são também o espelho do aniquilamento da dimensão sagrada nas nossas sociedades. Agora, “em tempo real”, temos o ecrã televisivo para fingirmos que acreditamos na patética coerência social das nossas solidões. Tudo isso é tão óbvio que só me resta pedir desculpa ao leitor pelo tempo que lhe tomei.

segunda-feira, outubro 28, 2024

Bruce Springsteen
— memórias de uma canção

If I Should Fall Behind é uma canção emblemática do álbum Lucky Town, lançado por Bruce Springsteen em 1992. Dedicada a sua mulher, Patti Scialfa, a canção foi recentemente evocada por ambos durante uma conversa com Howard Stern, na SiriusXM Radio — são momentos de romantismo pontuado por saborosa ironia.
 

domingo, outubro 27, 2024

Bruno Reidal
— uma nova história da loucura

Dimitri Doré no papel de Bruno Reidal: memórias trágicas

Bruno Reidal - Confissões de um Assassino encena a história verídica de um crime cometido em 1905 por um jovem seminarista: descobrimos, assim, o trabalho de Vincent Le Port, cineasta capaz de expor os contrastes mais perturbantes do factor humano — ete texto foi publicado no Diário de Notícias (29 agosto).

Neste tempo de filmes enredados na monotonia do politicamente correcto, apenas empenhados em satisfazer um discurso “edificante” que já está consumado (e consumido) antes mesmo do filme começar a ser projectado, que fazer face a um objecto tão estranho e impressionante como é Bruno Reidal - Confissões de um Assassino, primeira longa-metragem do francês Vincent Le Port (n. 1986)? Talvez começar por lembrar que o cinema não é uma colecção de sermões moralistas para reforçar o sonambulismo cultural de uma audiência de “talk show”…
Que está, então, em jogo neste filme revelado em 2021, na Semana da Crítica de Cannes? Pois bem, uma história (verídica) vivida no ano de 1905, no departamento de Cantal, no centro-sul do mapa de França. Bruno Reidal é um jovem seminarista que mata um rapaz de 12 anos, de imediato entregando-se às autoridades — de forma esquemática, podemos dizer que o filme se organiza como uma memória didáctica do processo de interrogação de uma junta de médicos, tentando compreender de onde provém a violência brutal de Reidal, aliás desde o primeiro momento reconhecida pelo próprio.
Na frieza metódica da sua exposição, Bruno Reidal - Confissões de um Assassino não terá muitas experiências paralelas na história do cinema. Para o leitor eventualmente interessado em explorar esse desafio narrativo de encenar o mal absoluto, recordo um outro exemplo, também francês, datado de 1976: Moi, Pierre Rivière, de René Allio, sobre o caso de um jovem que, na Normandia, em 1835, assassinou vários familiares — na base do argumento do filme estão documentos compilados por Michel Foucault (1926-1984), no âmbito das suas investigações dos anos 50/60 sobre as doenças mentais e a história da loucura.
Dir-se-ia que Le Port criou uma espécie de capítulo zero para uma nova história da loucura, tanto mais concisa e perturbante quanto é o próprio Bruno Reidal que surge como narrador do seu destino trágico. O crime que ele comete envolve um radicalismo cuja obscenidade é ampliada pelo facto de a sua vítima acabar por resultar de uma escolha “acidental”. Mais do que isso: Reidal aceita expor — e, mais do que isso, escrever — a sua confissão, desde o primeiro momento reconhecendo, com infinitos detalhes, que nele existe um ziguezague perverso entre a pulsão sexual e o impulso assassino.
O filme é “apenas” o relato desse processo confessional em que o factor humano se expõe para lá de qualquer hipótese romanesca ou redentora. Há um misto de serenidade e coragem na “mise en scène” de Le Port, relatando esta odisseia sangrenta como uma história que não é exterior a esse factor, antes expõe as convulsões internas daquilo que habitualmente apelidamos de “natureza humana”. A não esquecer: a sua linguagem precisa e descarnada encontra o eco adequado no espantoso trabalho do estreante Dimitri Doré, intérprete de Bruno Reidal.

The Smile, Opus 3

Cerca de nove meses depois de Wall of Eyes, aí está o terceiro álbum de The Smile, a banda de Jonny Greenwood, Tom Skinner e Thom Yorke — "quase" os Radiohead, mas não os Radiohead... Reencontro com sonoridades post-post muitas experiências e sensibilidades, sempre seduzidas pelas mais inesperadas e envolventes variações rítmicas, pontuando, como um sonho, o presente da nossa escuta. Tudo envolvido com telediscos nascidos de uma iconografia computorizada que não quer disfarçar a sua serena nostalgia — eis Don't Get Me Started.