sexta-feira, novembro 07, 2025

A razão e as razões de André Téchiné

Isabelle Huppert com os "novos vizinhos"

Figura ímpar do cinema francês das últimas seis décadas, André Téchiné regressa com Os Novos Vizinhos, filme simples e majestoso sobre uma teia de inesperadas cumplicidades. Com a admirável Isabelle Huppert — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 outubro).

Pensemos em O Local do Crime (1986), talvez o mais belo dos filmes em que André Téchiné já dirigiu Catherine Deneuve. Ou em Os Juncos Silvestres (1994), uma teia de paixões com a guerra da Argélia em pano de fundo. Ou ainda Les Témoins (2007), inédito no mercado português, centrado num grupo de personagens assombrado pela eclosão da sida. Como podemos definir a linha geral do cinema de Téchiné? Pois bem, em todos os seus trabalhos deparamos com o radicalismo da pulsão amorosa e, mais do que isso, a singular, por vezes sublime, estranheza das relações humanas. A sua mais recente realização, Os Novos Vizinhos (2024), aí está como um belíssimo prolongamento de uma obra fulcral na história do cinema francês (e europeu!) das últimas seis décadas.
Uma breve sinopse pode ajudar-nos a compreender aquela estranheza. Isabelle Huppert tem mais uma das suas admiráveis composições minimalistas como Lucie Muller, oficial da secção de investigação científica da polícia de Perpignan, figura solitária cujo marido, também polícia, se suicidou. Vai conhecendo Yann (Nahuel Pérez Biscayart), Julia (Hafsia Herzi) e a sua filha Rose (Romane Meunier), os seus “novos vizinhos” (Les gens d'à côté é o título original), com eles estabelecendo uma relação quotidiana de múltiplas cumplicidades... Até que descobre que Yann é um activista político cujas formas de protesto contra a polícia lhe valeram uma condenação e o cumprimento de uma pena de prisão domiciliária...
Téchiné encena tudo isso com a fluência de uma reportagem — a sua câmara mantém uma relação próxima, delicada e sensual, com os rostos e os corpos dos actores —, ao mesmo tempo que observa os detalhes das vidas comuns (e em comum) como sinais de uma complexidade que não se esgota, nem de longe nem de perto, no estatuto dramático (ou no simbolismo social) que cada personagem parece representar. O envolvimento de Lucie com Yann e a sua célula familiar vai mesmo desencadear um processo de interrogação dos limites existenciais de cada ser humano, até porque, de forma subtil e ambígua, Téchiné se mantém fiel a uma lógica realista de observação da banalidade do quotidiano.
De Téchiné costuma dizer-se, e com fundamento, que é um dos herdeiros directos de François Truffaut — a sua primeira longa-metragem, Paulina s’en va surgiu em 1969, o ano em que Truffaut assinou A Sereia do Mississipi (com Catherine Deneuve!). Seja como for, importa não esquecer que tal genealogia nos remete para a herança intemporal de Jean Renoir (1894-1979) e para a sua disponibilidade moral para resistir a qualquer razão universal, nunca menosprezando as razões de cada uma das suas personagens.

quinta-feira, novembro 06, 2025

domingo, novembro 02, 2025

Heartbeat City [DeLuxe]

Foi há 40 anos que The Cars lançaram Heartbeat City, entretanto consolidado como um clássico incontornável de uma pop tingida de cores new wave, sempre em amena convivência com sintetizadores e afins. Em boa verdade, as contas não batem muito certo, já que aquele que era o quinto álbum de estúdio da banda de Ric Ocasek surgiu a 12 de março de 1984. Mas não nos queixemos dos ajustes do calendário: o que importa é registar a novíssima edição DeLuxe — são cinco CD com misturas, remisturas & etc., e ainda um concerto de 1984. Actualizando a memória, eis o tema-título tal como foi interpretado no Live Aid, em Filadélfia, a 13 de julho de 1985.
 

A herança de Hannah Arendt

Fotograma do filme Vida Activa: O Espírito de Hannah Arendt (2015)

O que é o espaço público da vida política? Dentro dele, que lugar existe (ou não) para os cidadãos que somos? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 outubro).

A revista francesa Philosophie Magazine acaba de lançar um número especial dedicado a Hannah Arendt (1906-1975). Nele encontramos uma antologia multifacetada, incluindo citações, textos de análise e entrevistas com estudiosos da obra de Arendt, celebrando a extrema e perturbante actualidade da sua obra. Entenda-se: não uma “aplicação” simplista do seu pensamento ao nosso século XXI, mas uma releitura crítica da sua fascinante pluralidade argumentativa, sem esquecer que tal pensamento não pode ser dissociado do contexto geo-político em que os nazis puseram em marcha o Holocausto, nessa medida envolvendo o estudo dos totalitarismos antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial.
As propostas de reflexão são tanto mais interessantes quanto, mesmo quando não o explicitam, ecoam uma fundamental disponibilidade intelectual que vai pontuando a obra de Arendt. A saber: o desejo de libertar a política — enquanto pensamento e acção — da dicotomia compulsiva “direita/esquerda”. Escusado será dizer que a resistência às facilidades de tal dicotomia não se confundem com qualquer forma de fusão, que seria pura confusão, dos ideários dos diferentes adversários políticos.
O que está em causa é a possibilidade de pensar além (porventura aquém) da sua pressão ideológica e, hoje em dia, mediática, infelizmente dominante no espaço televisivo. A esmagadora maioria das “análises” que acompanhamos no pequeno ecrã aplicam a fórmula “direita/esquerda”, não para tentar compreender a dinâmica das ideias políticas, apenas para avaliar se tais ideias satisfazem ou não a fórmula dicotómica enunciada antes do próprio conhecimento dos factos e das suas nem sempre previsíveis dialécticas.
Numa das entrevistas deste número da revista, Roger Berkowitz, filósofo e professor do Bard College (Nova Iorque), fala, em particular, do que significa “defender uma certa ideia da América” face à presidência de Donald Trump. A esse propósito, analisa os prolongados efeitos da acção da “nova elite” que, na sequência das convulsões da década de 1960 contra as elites conservadoras, se apresentou como uma entidade que sabe “tudo sobre tudo”, tentando impor “novas normas para todos”.
Berkowitz recorda que semelhante ditadura do novo (a expressão é apenas minha) “é o que Hannah Arendt critica, por exemplo, na vontade dos militantes dos direitos cívicos imporem pela força que os autocarros escolares se abram à diversidade racial, sobrecarregando as crianças com a reparação do fardo da segregação herdado do passado” — sem esquecer, repito, que tudo isto deve ser citado em função de uma conjuntura americana vivida há 60 anos.
De qualquer modo, Berkowitz reflecte também sobre o presente de uma certa cultura política “liberal” (as aspas são dele), prolongando o seu raciocínio com uma alusão muito pessoal: “Sou favorável ao aborto, mas não pretendo impor os meus pontos de vista aos que não pensam assim. Sou favorável à mudança de género, mas não pretendo impor a toda a gente a ideia segundo a qual o género não existe. Acima de tudo, não estou a afirmar que aqueles que discordam de mim são racistas sexistas e transfóbicos que deviam ser excluídos do debate público.”
A herança de Hannah Arendt não pode ser separada deste misto de agilidade e contundência — e, nessa medida, do conceito (e, sobretudo, das práticas) daquilo a que damos o nome de espaço público. Recordando Thomas Jefferson, escreveu ela em 1967, no seu Ensaio sobre a revolução: “O que, segundo ele, constituía o perigo mortal para a república era que a Constituição tivesse conferido todo o poder aos cidadãos sem lhes proporcionar a possibilidade de serem republicanos e de agirem enquanto cidadãos.”
O que nos encaminha para uma pergunta que assombra as nossas democracias: porque é que o único espaço público activo, diariamente activo, passou a ser o espaço televisivo? Para lá do afunilamento dos pensamentos, não estará o mesmo espaço a promover uma noção meramente virtual da consciência política, sustentada pelo fluxo quotidiano de imagens sem imaginação? Resta saber se há algum político com coragem para pensar sem se submeter às regras desse espaço, mas também não desistindo das suas potencialidades democráticas.

sexta-feira, outubro 31, 2025

Down to Be Wrong, Haim

[ The New Yorker ]

Down to Be Wrong, título emblemático do álbum I Quit, foi apresentado assim pela primeira vez em público — eis as Haim, no palco de The Bellwether (Los Angeles), no dia 23 de abril de 2025.

Depois da Caçada
— o cinema é também uma arte da palavra


Depois de Queer, adaptado de William S. Burroughs, o italiano Luca Guadagnino encena um grupo de personagens assombrado por um caso de agressão sexual: Depois da Caçada fica, desde, já, como uma das grandes estreias de 2025 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 outubro).

O novo filme de Luca Guadagnino, Depois da Caçada (título original: After the Hunt) poderá resumir-se como um drama familiar que vai deslizando para os sobressaltos de um “thriller” psicológico. No seu centro encontramos a personagem de Alma Imhoff (Julia Roberts), uma respeitada professora da Universidade de Yale, que se vai descobrir encurralada num labirinto de factos e insinuações: a sua aluna preferida, Maggie (Ayo Edebiri), acusa Hank (Andrew Garfield), colega e grande amigo de Alma, de agressão sexual...
Entenda-se: Depois da Caçada não é uma dessas narrativas moralistas em que os “bons” e os “maus” estão definidos antes mesmo de acontecer o que quer que seja. Alimentando muitos fundamentalismos — todos os dias potenciados nos ecrãs televisivos —, tais narrativas apenas servem para reduzir a complexidade das relações humanas a “sermões” da futilidade ideológica e mediática dos discursos politicamente correctos.
Depois da Caçada é tudo menos isso. Se mais não fosse, o filme de Guadagnino distinguir-se-ia pela capacidade (pedagógica, sem dúvida) de encenar um universo peculiar — a comunidade intelectual de Yale — como uma câmara de eco de um fenómeno eminentemente contemporâneo. A saber: a consagração de valores (ou da falta deles) que tende a reduzir homens e mulheres a símbolos mecânicos de um mundo em que os “puros” estão vocacionados para investigar e, sempre que possível, esmagar os “impuros”.
Daí o valor desta admirável proeza cinematográfica, sem hesitação um dos filmes maiores de 2025. O que acontece em Depois da Caçada é produto de um entendimento eminentemente clássico do trabalho narrativo, integrando dois vectores fundamentais: primeiro, a importância do argumento como peça vital da estrutura de um filme e, nessa medida, do envolvimento intelectual e afectivo (não necessariamente por esta ordem) do espectador; depois, o papel decisivo do labor dos actores, muito longe de qualquer “reencarnação” da Inteligência Artificial.
Se ao espectador comum, condicionado pelas contaminações digitais de super-heróis e afins (veja-se a mecanização de um actor tão talentoso como Jared Leto no recente Tron: Ares), ainda resta algum gosto pela verdade humana dos actores, Depois da Caçada tem algo de genuíno para lhe oferecer. Lembremos o paralelo esclarecedor com a anterior realização de Guadagnino, Queer (2024), genial adaptação do romance de William S. Burroughs, com Daniel Craig.
O elenco reunido por Guadagnino distingue-se pelas suas infinitas nuances expressivas, sendo inevitável destacar a performance de Julia Roberts, há muito liberta da herança de Pretty Woman (1990), aqui expondo a perturbação mais secreta de uma mulher desafiada a enfrentar as fragilidades da própria verdade que construiu. Sem esquecer o sempre subtil, quase discreto, Michael Stuhlbarg no papel de Frederik, marido de Alma.

Cinema & teatro

Perante a riqueza dos diálogos de Depois da Caçada, haverá uma muito antiga forma de estupidez cultural capaz de atacar este tipo de filme por aquilo que seria a sua dimensão “teatral” (como se o próprio teatro se esgotasse nas palavras ditas pelos actores...). Em boa verdade, Guadagnino devolve-nos as maravilhas esquecidas de um cinema (Frank Capra, Eric Rohmer, Woody Allen, etc.) em que a palavra é tratada como matéria nuclear da organização do mundo.
O que encontramos nos prodigiosos diálogos do argumento de Nora Garrett (nomeação “obrigatória” para os Oscars!) é o poder efectivo, ora transparente, ora ambíguo, da palavra como "coisa” viva de todas as trocas humanas, das mais institucionais às mais íntimas. Neste tempo de muitas discussões ociosas sobre a “verdade” dos factos, Depois da Caçada leva-nos a redescobrir essas trocas como um palco sem quarta parede: aí jogamos, momento a momento, palavra a palavra, o que somos e o que imaginamos ser.

The Fate of Ophelia [versão acústica]

The Fate of Ophelia, tema nuclear do álbum The Life of a Showgirl, de Taylor Swift, já tem a prometida versão acústica. Ou como uma canção genuinamente pop apela à sua própria transfiguração — em baixo, o teledisco da primeira versão.

(...) All that time
I sat alone in my tower
You were just honing your powers
Now I can see it all
Late one night
You dug me out of my grave and
Saved my heart from the fate of
Ophelia (...)



quarta-feira, outubro 29, 2025

Jack DeJohnette (1942 - 2025)

De Jack DeJohnette dir-se-á, inevitavelmente, que a longa lista daqueles com que colaborou — de Miles Davis a Keith Jarrett, passando por Bill Evans, Sonny Rollins ou Herbie Hancock — bastará para definir a excepcionalidade do seu lugar na história do jazz. Assim é, sem dúvida, mas importa não esquecer os registos em nome próprio de uma discografia imensa em que a sua arte como baterista, dispensando protagonismos pueris, deixou marcas indeléveis em todas as composições em que participou.
Nascido a 9 de agosto de 1942, em Chicago, DeJohnette faleceu em Kingston, Nova Iorque, no dia 26 de outubro — contava 83 anos. Eis uma das suas peças na companhia de Keth Jarrett e Gary Peacock, e um solo espectacular publicado por Bernhard Castiglioni, fundador do Drummerworld.com.
 



>>> Site oficial de Jack DeJohnette.
>>> Obituário no DownBeat.

O equilíbrio do dia [citação]

>>> O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha, e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte, onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas à porta da desgraça.

ALBERT CAMUS
O Estrangeiro
> tradução de António Quadros
(ed. Livros do Brasil, 2015)