domingo, setembro 30, 2007

Sound + Vision: 2º aniversário

Este blog festejou, recatadamente, dois anos de vida. Vale a pena dar a notícia, quanto mais não seja porque, desde Setembro de 2005, mais de 600 mil visitantes não é coisa banal (isto sem contar com os reloads que as estatísticas nos garantem...). Como balanço e prospecção, vale a pena reflectir um pouco com a inspiração de quem, com o seu trabalho, nos tem ajudado pensar as imagens e os sons (e também a partilhar as suas matérias): ele é um senhor que, este ano, fez 60 anos; ela, uma lady que, em 2008, completará 50 primaveras.

N.G.: A lad insane... Ou Aladdin Sane... Basta jogar com as mesmas letras em arranjos diferentes, mas a ideia é a mesma. Em 1973 um alienígena que chegara à Terra para ser estrela de rock'n'roll cede o seu lugar mediático a um ser atormentado pela rapidez do ritmo da vida urbana dos nossos dias. Aladdin Sane. Ou, outra vez, "a lad insane", mergulho neurótico maior anunciado mais tarde, em 1974, em Diamond Dogs, uma distopia de inspiração Orwelliana... Apenas um episódio numa história que este ano se tornou numa espécie de refrão regular, semana após semana, na vida do Sound + Vision... Pois é verdade, no título de uma canção de 1977 morava já o conceito que desde Setembro de 2005 ganhou expressão online. Só ele mesmo, Bowie, poderia ser a primeira figura a merecer honras de destaque para um ano de memórias e reflexões por estes lados... Mas a partir de Janeiro, uma dama tomar-lhe-á, aqui, esse lugar...

J.L.: Esta é uma das imagens mais inteligentes dos últimos tempos. Obviamente, os vícios mediáticos tendem a reduzi-la a uma "provocação", como se a cruz não fosse um signo constantemente apropriado pelas mais diversas formas de expressão e comunicação. Acontece que Madonna, na sua "Confessions Tour", limitou-se a prolongar uma reflexão que, em boa verdade, faz parte do seu labor há mais de vinte anos. Ou seja: cruzar o discurso pessoal com as imagens (e os valores) herdados da tradição — uma católica exprime-se com a herança que recebeu. Ser moderno com as "modernices" reinantes é fácil. Ser moderno sem renegar a tradição é um nobre desafio, íntimo e público.

Discos Voadores, 29 de Setembro

Esta semana o ovni buscou respostas numa zona habitualmente menos visitada da galáxia e celebrou os 50 anos da Stax Records, recordando sobretudo clássicos lançados pela editora de Memphis entre finais de 60 e inícios de 70.

Múm “A Little Bit Sometimes”
Djuna Bel “Mighty”
Blonde Redhead “The Dress”
New Pornographers “Challengers”
PJ Harvey “The Devil”
Patti Smith “Pastime Paradise”
Booker T & The MG’s “Time Is Tigh”
Devendra Banhart “Shabob Shabom”
Mazgani “Unaeging Games”
Thurston Moore “The Shape Is In A Trance”
The National “Slow Show”
Faris Nourallah “Gone”
Beirut “Nantes”
Shady Bard “Torch Song”
David Fonseca “Rocket Man”
Rufus Wainwright “Sanssouci”

The Go! Team “Doing It Right”
Humanos “Hardcore (1º escalão)”
Animal Collective “Peacebone”
Booker T & The MG’s “ Green Onions”
Arthur Connloy “Sweet Soul Music”
Otis Redding “Respect”
Sam & Dave “Soul Man”
Eddie Floyd “Knock On Wood”
Rufus Thomas “Walking The Dog”
Booker T & The MG’s “Soul Limbo”
Bar Kays “Soul Finger”
Staple Singers “I’ll Take You There”
William Bell + Judy Clay “Private Number”
Carla Thomas “Let Me Be Good To You”
Otis + Carla “Tramp”
Jean Knight “Mr Big Stuff”
Isaac Hayes “Theme From Shaft”
Bar Kays “Son Of Shaft”
Booker T & The MG’s “Foxy Lady”
Balla “Saltei de Mim”

Discos Voadores - Sábado 18.00 / Domingo 22.00
Radar 97.8 FM
ou www.radarlisboa.fm

Entre Santana Lopes e José Mourinho

Na última edição de O Eixo do Mal, na SIC Notícias, falava-se do caso da entrevista abandonada por Santana Lopes (depois da interrupção por um directo com a chegada de José Mourinho ao aeroporto da Portela), alguns dias antes, naquele mesmo canal. Se outros méritos não tivesse, o diálogo deixou uma lição básica: falou-se do assunto de forma directa e contundente, sem que o facto de se estar na SIC Notícias funcinasse como limitação ou incómodo — é o mínimo, claro, mas o ambiente de degradação televisiva em que vivemos justifica que o sublinhemos.
Na mesma edição, e a propósito da mesma ocorrência, foi nítido que a maioria dos participantes não tem grande estima pela personalidade de José Mourinho. O facto, em si mesmo, faz parte de todo o nosso espaço mediático e social — por mim, tenho enorme admiração por Mourinho, tanto no plano profissional como até por causa das suas relações com os meios de comunicação, sobretudo porque, mesmo com contradições (e não é minha intenção santificar ninguém), ele tem sabido confrontar esses mesmos meios com alguns dos seus abusos deontológicos.
O que me choca é o facto de, no meio de uma conversa naturalmente cheia de impasses e frases incompletas (que fazem parte da matriz coloquial do programa), alguém utilize o poder televisivo de que ali desfruta para aplicar um discurso de mero menosprezo pelos que não se reconhecem no seu sistema mental — aconteceu com Daniel Oliveira que, ao referir-se àqueles que admiram Mourinho, achou por bem deixar cair que são uns... "coitados".
Penso sempre que, no plano da ética filosófica, o poder argumentativo e a terminologia que cada um aplica decorre do reconhecimento implícito de que aceita que o seu interlocutor aplique o mesmo poder e a mesma terminologia. Como se Daniel Oliveira pudesse aceitar discutir, leal e inteligentemente, com alguém que começasse por lhe dizer que os eleitores do Bloco de Esquerda são uns "coitados". Acontece que a televisão faz-se também desta constante vacilação das matrizes de locução e pensamento que, voluntariamente ou não, valorizamos através do nosso próprio discurso.
E é uma ilusão infantil (aliás, muito favorecida pela ideologia domi-nante na televisão) julgar que o diálogo se enriquece com este "alar-gamento" para as esferas da banalidade intelectual ou do achincalhar de um qualquer interlocutor potencial. Por vezes, face à abertura democrática da televisão — e, sobretudo, por causa dela — é preciso dizer que há modelos de diálogo que importa recusar. Quanto mais não seja porque, até prova em contrário, ninguém é "coitado" apenas por pensar o que pensa ou sentir o que sente — incluindo os militantes do Bloco de Esquerda.

Santana Lopes/SIC Notícias: uma opinião

O recente diferendo Santana Lopes/SIC Notícias suscitou-me, aqui, a publicação de três posts (1, 2, 3). A esse propósito, um dos nossos visitantes, Leonel Ferreira, enviou-nos um mail onde, além do episódio em causa, evoca também o que aqui escrevi sobre um outro caso televisivo, protagonizado há poucos meses, na MSNBC, pela jornalista Mika Brzezinski — aqui fica esse mail e a minha resposta.

Caro João Lopes,
começo por admitir que a minha argumentação terá premissas suprimidas. Contudo, confesso que estou esperançado que irá compreender tão bem quanto eu onde pretendo chegar. No dia 30 de Junho de 2007, escreveu o caríssimo João Lopes, a propósito da opinião manifestada por Mika Brzezinski sobre o alinhamento das notícias: que se tratavam então de «uns três espantosos minutos de televisão, realmente capazes de tocar no cerne desse populismo mediático que, hoje em dia, infesta tantas formas de jornalismo».
Ora, se bem entendo, ao segundo texto, a atitude de Santana Lopes traz já sintomas de premeditação, pois afinal «o próprio Santana Lopes bem sabe como tudo isso funciona». Sabe o Santana Lopes, é certo, mas também o sabe a jornalista Mika Brzezinski. A diferença é que mesmo que os responsáveis da MSNBC soubessem o que Brzezinski ia fazer, isso não anula a importância e a pertinência da sua posição crítica. A diferença é isto. Isto e mais uns pozinhos… Não há pertinência crítica no gesto de Santana Lopes. Por outro lado, é-nos dada a complacência e condescendência de quem, sendo portador dessa mesma razão iluminista e tão modernamente sintomática, se digna a compreender o gesto de Santana Lopes «no plano humano», outorgando-lhe, entanto e inevitavelmente, «o sentido involuntariamente pueril».
Porque o João Lopes identifica, do alto das suas virtudes, as intenções, os podres e as incompreensões da contemporaneidade, os gestos de Santana Lopes e Mika Brzezinski divergem nesse mesmo plano: no seu solipsismo.
L.F.

Leonel Ferreira,
Creio que as “premissas suprimidas” aju-dariam a esclarecer onde pretende chegar, sobretudo porque suprimem também todas as premissas do que escrevi.
A frase «o próprio Santana Lopes bem sabe como tudo isso funciona» surge no interior de uma argumentação que a sua citação isolada não contempla. Desde logo, porque não pode ser desligada do seu contexto mais imediato. Ou seja: “Aliás, o próprio Santana Lopes bem sabe como tudo isso funciona: não há muito tempo, tentava ele legitimamente lutar pela sua sobrevivência política e era todos os dias (sublinho: todos os dias) achincalhado pela mesma multidão que agora vê nele o salvador da pátria...”
O “caso Brzezinski” não tem qualquer semelhança com o “caso Santana Lopes”: seja o que for que pensarmos sobre a sua atitude, Mika Brzezinski estava a manifestar publicamente o que pensava sobre critérios da própria empresa (um canal de televisão) onde trabalha.
Se me considera um arrogante que se expressa “do alto das suas virtudes”, não deve ficar surpreendido com a “complacência” e a “condescendência” que me atribui. Deduzo que sabe bem como tudo isso funciona.
J.L.

Inquérito: o melhor disco de Setembro

Retomado no mês passado, em formato democrático, o inquérito “discos do mês” está de volta. À votação apresentam-se dez dos álbuns que passaram pela rubrica “discos da semana” em Setembro. Como sempre, a votação decorre por sete dias, encontrando-se disponível na barra da direita do blogue, antes da zona de agenda. Os dez discos sob votação são:

Animal Collective “Strawberry Jam”
Devendra Banhart “Snokey Rolls Down Thunder Canyon”
The Go! Team “Proof Of Youth”
International Pony “Mit Dir Sind Wir Vier”
Joe Henry “Civillians”
Liars “Liars”
Múm “Go Go Smear The Poison Ivy”
PJ Harvey “White Chalk”
Siouxsie “Mantaray”
Thurston Moore “Trees Outside The Academy”

Recriar a inspiração de Beethoven

A obra de Ludwig Van Beethoven (1770-1827) é presença firme no repertório de muitas orquestras russas desde o momento que, em 1824, a sua Missa Solemnis foi, pela primeira vez, apresentada em São Petesburgo. Não será portanto estranho o facto de vermos o pianista e maestro Mikhail Pletnev a fazer de uma integral das sinfonias (já publicada em disco) e dos concertos para piano do compositor um dos desafios maiores da Russian National Orchestra no presente. A orquestra por si fundada em 1990 (a primeira sob financiamento não estatal em solo Russo desde a revolução de 1917), e da qual é hoje director artístico, tomou o ano de 2006 como sendo dedicado a Beethoven, contrariando a “norma” das agendas de efemérides que, no ano passado, assinalavam os 250 anos do nascimento de Mozart e o centenário de Shostakovitch... A orquestra, dirigida por Christian Gansch, e com Pletnev como solista, apresentou os cinco concertos para piano de Beethoven em dois serões de música ao vivo integrados no festival dedicado ao compositor que teve lugar em Bona, em Setembro do ano passado. É dessas actuações ao vivo, então gravadas, que surge a série de discos que a Deutsche Grammophon tem vindo a editar, um primeiro (com os concertos números 1 e 3) lançado há alguns meses, um segundo (com os concertos números 2 e 4) a chegar agora aos escaparates. Na Primavera de 2008 a edição da integral dos concertos para piano chegará ao seu fim com um terceiro volume, integralmente preenchido pelo quinto concerto para piano e orquestra op. 75, também conhecido como “Imperador”.

Como explica David Gutman no booklet que acompanha este disco, a gestação do Concerto para piano e orquestra nº2 op. 19 é difícil de localizar no tempo. Na verdade, este foi o primeiro concerto para piano terminado por Beethoven, mas acabou por ser apenas publicado depois de um outro, em dó maior, que hoje conhecemos como sendo o número um. Apesar desta indefinição de pormenor, o concerto enquadra-se numa etapa intermediária na obra de Beethoven e revela, a dada altura, influência clara de Mozart e de um evidente sentido de humor nas melodias para o piano. O Concerto nº 4, op. 58 (cuja composição se sabe datada entre 1805 e 1806) é hoje uma das suas obras mais admiradas e tocadas. Todavia, não só não se conhece dele um manuscrito original da partitura, como se crê que tenha sido escutado publicamente apenas uma vez em vida do compositor, numa maratona em Viena em Dezembro de 1808, servindo de primeira parte à apresentação da sua Sinfonia nº 5. Ambos os concertos respiram, exultantes, nestas soberbas interpretações. E, de facto, Pletnev explica, nas mesmas notas, que “muitas vezes Beethoven é tratado com interpretações em registo de mausoléu, o que certamente se entende pelo respeito com que é encarado”. Porém, nesta sua abordagem como pianista, acompanhado pela “sua” orquestra, o seu objectivo foi o de “viver cada frase, cada momento, com alegria, como os vivemos no dia a dia”. E, “apesar dos microfones”, tentar recapturar o sentido de “espontaneidade na recriação da inspiração de Beethoven”.

sábado, setembro 29, 2007

Nem santos (nem populares)

Ano Bowie – 64
‘All Saints’ – Compilação, 2001


Em 1993 David Bowie reuniu uma série de temas instrumentais gravados entre os álbuns Low, Heroes, Black Tie White Noise e a sinfonia de Philip Glass centrada em Low e deles fez uma compilação (no formato de CD duplo) da qual fez 150 cópias, que destinou apenas a um restrito circuito de conhecidos e amigos, usando-a então como o seu presente de Natal. Chamou-lhe All Saints... O disco, que então não teve edição comercial, rapidamente acabou transformado numa das mais desejadas raridades entre coleccionadores, atingindo alguma cópias valores incalculáveis. Em 2001, Bowie resolveu reduzir o alinhamento da versão dupla do álbum a apenas um disco, acrescentando-lhe alguns temas (um deles proveniente do então recente hours...), e retirando outros (entre os quais todos os originalmente provenientes do álbum de 1993). O alinhamento passou a ser essencialmente centrado em memórias instrumentais de finais de 70, mantendo-se a versão de Some Are, de Philip Glass, a fechar o disco. All Saints representa, por um lado, uma manobra de “democratização” de um objecto antes fechado a uma elite. Por outro, é um olhar de síntese de algum do seu trabalho musical mais experimental.

Para reencontrar a ficção científica (15)

Brian Aldiss
(n. 1925)

Vice presidente da H.G. Wells Society (naturalmente grande admirador da sua obra), Brian Aldiss publica regularmente desde 1955, não tendo limitado a sua escrita às fronteiras da ficção científica. Em 2001 viu o seu conto Supertoys Last All Summer Long servir de base ao filme A.I. – Inteligência Artificial, de Steven Spielberg, concretizando-se assim um projecto que o escritor há muito vinha a desenvolver com Stanley Kubrick, e que a morte deste último acabou por nunca proporcionar.
.
De seu nome completo Brian Wilson Aldiss, nasceu a 18 de Agosto de 1925 em East Dereham, no Reino Unido. Aos 18 anos, em plena II Guerra Mundial, alistou-se no exército, tendo cumprido serviço militar na Birmânia. A vivência do clima tropical da região servir-lhe-ia de inspiração para um dos seus mais marcantes romances, Hothouse, publicado em 1962 (a história de um trágico futuro para a Terra, depois de ter terminado o seu movimento de rotação sobre si mesma, promovendo o crescimento de uma frondosa vegetação tropical um hemisfério permanentemente exposto à luz solar, reduzindo o Homem, à beira da extinção, a pequenos grupos errantes protegidos sob a sombra das folhas).
Depois de terminada a guerra, Brian Aldiss trabalhou numa livraria em Oxford. Nesses dias escreveu contos de ficção científica para revistas da especialidade e The Brightfount Diaries (1955), crónicas sobre uma livraria ficcionada, inicialmente publicadas num pequeno jornal distribuído entre livreiros. Nesse mesmo ano venceu um concurso que propunha a criação de um conto passado no ano 2500. Ao saber do seu interesse pela ficção científica, a editora que meses antes lhe havia publicado The Brightfounr Diaries pediu-lhe novos textos, assim nascendo Space, Time and Nathaniel, a sua primeira antologia do género.
Em meados dos anos 60 Aldiss encetou, com Harry Harrison, a edição daquela que foi a primeira publicação de crítica na área da ficção científica, a Science Fiction Horizons. Aqui começou também uma existência paralela à escrita como editor e resposnável por antologias com contos de outros autores. Entre os livros que reuniu conta-se uma muito bem sucedida série de vários volumes de contos de ficção científica, publicada pela Penguin Books nos anos 60. Célebre ficou também, na sequência da descoberta do real aspecto da superfície do planeta Vénus, a antologia Farewell, Fantastic Venus!, na qual reuniu contos antigos nos quais se havia imaginado outros rostos e vidas para o planeta.
A natureza dos comportamentos entre poderosos e subjugados (The Interpreter), uma consciência ecologista (Hothouse), e reflexões sobre potenciais diferenças de hábitos junto de outros povos (The Dark Light Years) são algumas das temáticas de uma obra que também abordou a literatura de viagens e a poesia.
.


Alguns títulos significativos:
1958. Nave Mundo (Non Stop), Livros do Brasil, 1985
1960. The Interpreter
1962. Os Últimos Dias da Terra (Hothouse), Livros do Brasil, 1996
1964. Os Negros Anos Luz (The Dark Light Years), Livros do Brasil, 1992
1969. Barefoot In The Head

Intelectuais

É mesmo verdade. Por mim, já o disse e escrevi várias vezes, e faço questão em sublinhá-lo: hoje em dia, o mundo do desporto — e, em particular, o futebol — apropriou-se de muitas componentes do espaço intelectual. Nada contra, entenda-se: é bom pensar o futebol — mais simplesmente: é bom pensar.
O que é espantoso é que este fenómeno de "transferência" de valores funcione a partir de um esmagamento dos mais tradicionais exercícios intelectuais. Como? Pensemos, por exemplo, num recente blockbuster: Ocean's 13, de Steven Soderbergh (aliás, eleito pelos visitantes do Sound+Vision como o melhor filme de aventuras deste Verão). Se alguém se atrever a considerar que Ocean's 13 é um espantoso exercício mental, tendencialmente abstracto, sobre os modelos narrativos e iconográficos herdados da tradição do filme negro, está quase inevitavelmente condenado a ser insultado como um pretensioso "intelectual" entregue aos seus delírios... Vivemos, aliás, num país em que muito boa gente cultiva a palavra "intelectual", não como mera identificação de um modelo de trabalho ("bom" ou "mau", não é isso que está em causa), mas como um automático insulto. Não tenhamos ilusões: Jose Antonio Camacho e Paulo Bento têm mais reconhecimento, mais espaço de manobra e mais possibilidades práticas de mostrarem os seus dotes intelectuais — tanto melhor para eles. Vou ver. Bom jogo!

sexta-feira, setembro 28, 2007

Harrison por Scorsese

[Dezembro 2001]

George Harrison (1943-2001) vai ser objecto de um documentário dirigido por Martin Scorsese. Olivia Harrison, viúva do beatle que escreveu a canção Something, anunciou o projecto que contará com a participação de Paul McCartney e Ringo Starr, e também com o apoio da Apple Records, que já garantiu a possibilidade de utilização da música dos Beatles.
Esta é a confirmação inequívoca de que, cada vez mais, a relação com o património pop/rock é vital na dinâmica criativa de Scorsese (distinguido com um Oscar, este ano, pela realização de The Departed/Entre Inimigos). Em 2005, Scorsese dirigiu No Direction Home, uma obra-prima documental dedicada à música e às memórias de Bob Dylan. Entretanto, já concluíu outro projecto musical, Shine a Light, com os Rolling Stones, com estreia marcada para Abril de 2008. Tem pendentes um projecto de adaptação de um romance de Shusaku Endo (Silence) e uma evocação da juventude de Theodore Roosevelt (The Rise of Theodore Roosevelt, com Leonardo DiCaprio).

Santana Lopes: consenso?

Leio em alguns textos disponíveis na Internet que, através do abandono de uma entrevista na televisão, Santana Lopes conseguiu gerar em torno da sua personalidade um fenómeno de consenso.
CONSENSO?
Sejamos objectivos até onde é possível — digamos, então, que é verdade que a maioria das apreciações do caso vão no sentido de valorizar de forma positiva o comportamento de Santana Lopes. Em todo o caso, não é objectivamente verdade que esse comportamento esteja a ser analisado como se fosse uma inquestionável verdade divina. Bem pelo contrário, o que é interessante em tudo isto é que, a pretexto do caso, estejam a vir ao de cima visões muito diversas — e, em muitos aspectos, inconciliáveis — sobre os protagonistas da cena política e, em particular, sobre as suas relações com o espaço mediático e televisivo.
Quando se fala em "consenso" (e, por vezes, a palavra vem do próprio meio jornalístico) está-se a prestar um péssimo serviço ao simples gosto de pensar. De facto, as coisas não são a preto e branco — é sempre possível lidar com o real para além da oposição automática do "pró" e do "contra". Julgar que o mundo se reduz a esse maniqueísmo é também um modelo de infantilismo cognitivo, moral, político e... jornalístico.

A IMAGEM: Robert Mapplethorpe, 1980

Robert Mapplethorpe
Auto-retrato, 1980

Políticas televisivas (cont.)

Vale a pena continuar a reflexão em torno do recente episódio televisivo protago-nizado por Santana Lopes, quando decidiu abandonar uma situação de entrevista na SIC Notícias. Vale a pena, sobretudo, co-meçar por observar a insólita desproporção de tudo isto.
Por um lado, o país é diariamente massacrado por programas televisivos que estão, há anos e anos, a formatar gostos, olhares e formas de consumo. Em quê? Em boa verdade, em tudo: da normalização telenovelesca das ficções à exploração pornográfica do fait divers mais ou menos sanguinário, as televisões aceitaram transformar-se, muitas vezes, em paradas de monstruosidades que ferem a mais básica dignidade humana e promovem a insensibilidade e a anti-inteligência. Por outro lado, os notáveis da política, da economia e, hélas!, da gestão cultural primam pelo silêncio em relação a tal conjuntura — no caso dos profissionais da cena política, há mesmo uma indiferença quase total em relação à discussão do poder efectivo (tema político, por excelência) que as televisões adquiriram na gestão dos valores sociais e éticos.
É neste contexto que a atitude de Santana Lopes tende a ser reduzida a um heroísmo patético e maniqueísta: ele teria feito frente ao "papão" televisivo. O mais absurdo disto tudo é que semelhante "heroicização" decorre de um sistema de valores banalmente televisivo. Como quando o Marco do Big Brother deu o seu mítico pontapé — a televisão tornou-se uma máquina de entronização do fait divers; basta alguém fazer algo de atípico para ser transformado em centro da vida social e mediática. Aliás, o próprio Santana Lopes bem sabe como tudo isso funciona: não há muito tempo, tentava ele legitimamente lutar pela sua sobrevivência política e era todos os dias (sublinho: todos os dias) achincalhado pela mesma multidão que agora vê nele o salvador da pátria...
Na prática, isto apenas reforça o vazio de pensamento face à conjuntura televisiva. Encore un effort...

Dylan, Dylan, Dylan... & Dylan

É editado, no próximo dia 2, a compilação tripla de Bob Dylan, simplesmente intitulada... Dylan. Para os interessados, aqui fica o alinhamento:

CD1 (gravações de 1962 a 1967): Song to Woody, Blowin' in the Wind, Masters of War, Don't Think Twice, It's All Right, A Hard Rain's A-Gonna Fall, The Times They Are A-Changin', All I Really Want to Do, My Back Pages, It Ain't Me, Babe, Subterranean Homesick Blues, Mr. Tambourine Man, Maggie's Farm, Like a Rolling Stone, It's All Over Now, Baby Blue, Positively 4th Street, Rainy Day Women #12 & 35, Just Like a Woman, Most Likely You Go Your Way (And I'll Go Mine), All Along the Watchtower

CD2 (de 1967 a 1985): You Ain't Goin' Nowhere, Lay Lady Lay, If Not for You, I Shall Be Released, Knockin' on Heaven's Door, On a Night Like This, Forever Young, Tangled Up in Blue, Simple Twist of Fate, Hurricane, Changing of the Guards, Gotta Serve Somebody, Precious Angel, The Groom's Still Waiting at the Altar, Jokerman, Dark Eyes

CD 3 (de 1986 a 2006): Blind Willie McTell, Brownsville Girl, Silvio, Ring Them Bells, Dignity, Everything Is Broken, Under the Red Sky, You're Gonna Quit Me, Blood in My Eyes, Not Dark Yet, Things Have Changed, Make You Feel My Love, High Water (For Charley Patton), Po' Boy, Someday Baby, When the Deal Goes Down

A compilação será brevemente acompanhada por um DVD retrospectivo. The Other Side Of The Moon, a editar a 30 de Outubro, inclui imagens de actuações no Newport Folk Festival de 1963 a 65 e 80 minutos de gravações inéditas.

Uma questão de direitos

Chama-se My Rights versus Yours, e é o single de avanço do novo álbum dos canadianos New Pornographers, que assinalam em 2007 dez anos de carreira. O álbum, de título Challengers, é um perfeito sucessor da pop indie, elegante e luminosa de Twin Cinema. Enquanto não há teledisco, aqui os podemos ver e ouvir em actuação no programa de David Letterman.

Um bailado imperial

Chegou ao mercado português de DVD o filme A Maldição da Flor Dourada, no qual o realizador chinês Zhang Yimou retoma e leva a um grau de absoluto deslumbramento formal uma linguagem que começou a abordar em Herói (2002). A história devolve-nos mais de mil anos atrás no tempo, para então reencontrarmos a opulência da China imperial durante o período de grande esplendor económico e artístico vivido durante a dinastia Tang. A quase totalidade da acção decorre dentro dos muros da Cidade Proibida (na verdade nada mais que uma réplica à escala dos pátios centrais e pavilhões adjacentes, pelos quais as câmaras circularam livremente). Como em experiências anteriores (e adjuvado pela música de Tan Dun), Zhang Yimou coreografa os acontecimentos como se de um delicado bailado o filme se tratasse, tão belos os gestos do quotidiano (como a regular procissão de criadas que de duas em duas horas levam um remédio à imperatriz), como as lutas e batalhas, estas mais parecendo verdadeiras companhias de dança em plena representação que hordas de corpos e armas em combate. Os espaços e o magnífico guarda roupa, que a direcção de fotografia explora condignamente contribuem para construção de um cenário visualmente esmagador, no qual vamos descobrir as muitas verdades escondidas na vida privada dos elementos de uma família imperial a quem não faltam os motivos para fazer silêncio. Estamos a dias do Festival dos Crisântemos, e o palácio imperial está literalmente forrado a flores. Nas melhores pétalas vão cair as nódoas de velhas verdades caladas, de traições, de vinganças, que uma a uma rebentam no coração da mais poderosa, mas não menos frágil, família do império.

Políticas televisivas

O abandono de uma entrevista televisiva por um político tornou-se um caso revelador daquilo que é a percepção dominante das relações entre cena política e cena televisiva. Aconteceu na SIC Notícias, na noite de ontem, 26 de Setembro de 2007: Ana Lourenço interrompeu Santana Lopes para que fosse dada em directo a chegada a Portugal de José Mourinho; na sequência da reportagem, Santana Lopes manifestou o seu desagrado pela interrupção e abandonou a entrevista.



Tanto bastou para que o gesto de Santana Lopes fosse maioritariamente visto como uma prova de coragem e, sobretudo, como um protesto contundente contra a “futebolização” da televisão. Vale a pena sistematizar algumas pistas de reflexão:

* Quantidade/qualidade — A saída de Mourinho do Chelsea adquiriu, de facto, em todos os canais, um imenso tempo de antena (a meu ver, desproporcionado e excessivo). Em todo o caso, regressa aqui uma visão meramente “métrica” da televisão: fala-se quase sempre de minutos “a mais” ou “a menos”; fala-se muito pouco ou nada do gratuito televisivo, do moralismo televisivo, da demagogia televisiva.
* Códigos — A reacção de Santana Lopes parece ignorar que, de facto, um canal de notícias (“bom” ou “mau”, não é isso que está em causa) funciona, a todos os instantes, aberto para aquilo que, na gíria anglo-saxónica, se chama breaking news — interromper não resulta de um “maior” ou “menor” respeito por quem está a ser entrevistado; é um efeito codificado inerente ao próprio jornalismo que (“mal” ou “bem”, insisto) se está a praticar.
* Tribuna vs dispositivo — A reacção de Santana Lopes parece decorrer também de um entendimento formalmente equívoco da própria relação das televisões com os protagonistas da cena política: as televisões não funcionam como “tribuna” desses protagonistas; participar num dispositivo televisivo implica uma aceitação tácita das regras desse dispositivo — utilizar o próprio dispositivo para denunciar aquilo que poderão ser as suas falhas é uma atitude que carece de alguma invenção estética ou, então, está condenada ao vazio argumentativo.

É neste último ponto que reside algo de sintomático, quanto mais não seja pelo carácter quase inédito da situação: por uma vez, temos um político que reage “contra” a televisão.
Claro que, no plano filosófico, há algo de bizarro e contraditório na reacção de alguém que: primeiro, não viu a sua entrevista minimamente posta em causa; segundo, possui um curriculum sempre ligado à visibilidade mediática, visibilidade essa que, num período relativamente longo, decorreu da sua inserção profissional no mundo do futebol.
Claro também que podemos considerar que, face à possibilidade de um directo com José Mourinho, Santana Lopes deveria ter sido informado disso mesmo. E podemos até especular: se a SIC Notícias não o fez, terá cometido um erro — erro benigno, não de desrespeito pelo entrevistado, mas de mero procedimento jornalístico.
Mas não faz sentido dramatizar tudo isso porque, insisto, há aqui um fortíssimo valor de sintoma. Porquê? Antes do mais porque vivemos num contexto mediático marcado por três contundentes orientações globais, cada vez com menos excepções:
1 - FICÇÃO: a televisão está todos os dias a aniquilar a pluralidade das ficções audiovisuais, impondo uma monocultura narrativa fundada num modelo único e ditatorial (a telenovela).
2 - ENTRETENIMENTO: a televisão está todos os dias a promover a infantilização dos espectadores, enquadrando-os em concursos e programas (ditos de) entretenimento que favorecem uma visão anedótica, simplista e gratuita das pessoas e das relações humanas.
3 - OLHAR: a televisão está todos os dias a impor modos de obscenidade orientados por uma crescente adulteração da simples ética do olhar, nomeadamente através de reality shows cujas leis formais e efeitos práticos têm mesmo contaminado trabalhos da área (dita da) informação.

Ora, que aconteceu? Uma reacção que parece resultar de uma visão meramente instrumental do dispositivo televisivo. De um modo geral (e escusado será dizer que as excepções são altamente honrosas), os protagonistas da vida política vêem a televisão como um simples veículo para os seus discursos, evitando discutir a televisão que, realmente, se faz no nosso país. Ora, essa televisão apresenta-se, todos os dias, marcada pelas três orientações atrás resumidas. Mais do que isso: é uma televisão que vive nessa imensa agonia, cultural e comunicacional, há mais de uma década. Daí o escândalo: face a tal agonia, o comportamento global da classe política (com pouquíssimas excepções, repito) tem-se distinguido por um silêncio devastador, silêncio que configura uma atitude de demissão — política, precisamente — face ao poder normativo que a televisão adquiriu em todas as formas de comportamento, relação e organização do tecido social.

Não faz sentido exigir a Santana Lopes (ou seja a quem for) que reaja de forma asséptica a uma situação que pode ser emocionalmente incómoda e que, obviamente, ele não está obrigado a antecipar. Como não faz sentido esperar que, seja quem for, num estúdio de televisão, funcione como uma espécie de encarnação sem mácula de um qualquer “racionalismo” universal. Há mesmo na reacção de Santana Lopes um carácter genuíno que, de tão raro e não premeditado, merece todo o respeito. Em todo o caso, ele próprio colocou-se numa situação que só pode expor ainda mais o gigantesco défice de pensamento da classe política face às monstruosidades televisivas que, todos os dias, contaminam a nossa vida social.

A indignação contra o directo da chegada de Mourinho, mesmo que a possamos compreender no plano humano, possui um sentido involuntariamente pueril. E extravasa para além do episódio e, no limite, do próprio caso particular de Santana Lopes. Para mostrar que se interessa pelo papel social da televisão — e, sobretudo, pelos seus efeitos anti-sociais —, a classe política terá que passar da indignação circunstancial ao pensamento de fundo. Terá que trabalhar mais as ideias, infinitamente mais. Terá, antes disso, que ter ideias. E terá que saber explicar, metodicamente e sem ambiguidades, se se sente bem com a avalancha quotidiana de mediocridades televisivas. Mais do que isso: em caso afirmativo, terá que esclarecer como é que se sente bem.

quinta-feira, setembro 27, 2007

Discos da semana, 24 de Setembro

Editado em 2006, Rather Ripped revelou o melhor momento dos Sonic Youth em cerca de uma década. Já este ano, os concertos centrados em Daydream Nation colhem aplausos transversais, ao mesmo tempo que um inesperado acordo com a Starbucks os coloca na lista dos nomes de primeiro plano a optar por caminhos alternativos numa indústria em clara etapa de transformação. Curioso, assim, o momento que Thurston Moore escolhe para lançar o seu segundo álbum a solo, sucessor do já distante Psychic Hearts (1995). Trees Outside The Academy tem em si todos os elementos que dele poderiam fazer o sucessor directo de Rather Ripped, caso o processo de evolução do som dos Sonic Youth aceitasse a contaminação folk e o protagonismo de uma guitarra acústica que aqui se evidencia. Talvez não tenha sido essa a vontade do grupo, optando Thurston Moore por concentrar as canções “primas” de Incinerate (e outras, mais distantes, mais discretas, mais acústicas) num álbum em nome próprio e em etiqueta sua, como que a deixar claro que este é apenas um episódio seu, o próximo sabendo-o novamente entre o grupo que ajudou a transformar numa das referências maiores da história da música popular. Trees Oustide The Academy é, apesar do protagonismo da guitarra acústica e dos elegantes arranjos onde pontuam o violino (de Samara Lubelski), as percussões de Steve Shelly (sim, dos Sonic Youth) e a guitarra ocasional de J Mascis (dos Dinosaur Jr, em cujo estúdio trabalharam), um álbum onde encontramos as marcas de identidade de Moore, não se acanhando este de pequenos devaneios “sónicos” em momentos localizados, como no próprio tema-título. Thurston Moore não esconde aqui outros destinos da sua curiosidade musical, nomeadamente em terreno folk, de onde partem muitas das ideias estruturais desta soberba colecção de canções. Entre os seus mundos, este é um disco de conforto garantido a quem há muito o acompanha, onde uma noção de surpresa não deixar de se sugerir, sobretudo na elegância do recorte de canções que sabem ser mais íntimas sem que isso as transforme em diários confessionais. Trees Outside The Academy revela um homem na fronteira dos 50, brilhante autor de grandes canções, directo no seu discurso, seguro nas formas, discreto na sua comunicação. Eis um disco “feel good” para quebrar o mito que só das sombras nascem os grandes momentos de criação.
Thurston Moore
“Trees Outside The Academy”
Cargo Records / Ananana
4/5
Para saber mais: MySpace
.
.
Não é por acaso que, disco após disco, PJ Harvey se afirma como uma das mais sólidas referências da música dos nossos tempos, evidente sendo a sua admiração por duas figuras que, de certa forma, ajudaram a moldar a sua forma de se expressar: Patti Smith e Nick Cave. A primeira foi condutora das primeiras manifestações de Polly Jean, traduzindo a frontalidade rock de álbuns como Dry (1992) ou Rid Of Me (1993) o melhor da genética que tem Horses e seus descendentes por raiz. Mais tarde, álbuns como To Bring You My Love (1995) ou Stories Of The City Stories Of The Sea (2000) confirmaram-na mais que mera discípula. Este último disco, premiado, assegurou a sua descoberta por mais vastos públicos, aos quais PJ Harvey respondeu depois com o mais radical Uh Huh Her (2004), sublinhando que, como no passado, é mulher do seu destino e dotada de uma inabalável vontade em surpreender. White Chalk volta a fazê-lo e, mais que nunca, mostra como Nick Cave (na sua fase pós-90) é também uma das suas maiores fontes de admiração. Contudo, à luxuriante grandiosidade das baladas daquele com quem partilhou o microfone em Henry Lee (em 1996), PJ Harvey opõe neste seu novo álbum um ascetismo para voz, piano e poucos mais adornos, como que aplicando um minimalismo de osso à mostra semelhante ao que, então acompanhada pela sua guitarra, nos mostrara nos primeiros álbuns. O álbum é um verdadeiro pólo de surpresas e revelação, a capa representando desde logo um primeiro desafio ao que até aqui tínhamos como “imagem” da cantora que, deslumbrantemente, se transfigura. Austera nas formas, sussurra mais vezes que as que canta. As próprias canções são prodígios de contenção, algumas mais próximas de esboços que de espaços de arte final, em conjunto propondo um ciclo que traduzem, mais que uma temática comum, uma forma de estar, de reflectir. Poucas notas, palavras ocasionalmente crípticas por vezes construídas como monólogos interiores, demonstrando como por vezes não são necessários socos de som para arrebatar atenções. Vai surpreender muito boa gente. Certamente dividir opiniões... Mas PJ Harvey nunca foi alvo de unanimidades...
PJ Harvey
“White Chalk”

Island / Universal
4/5
Para ouvir: MySpace
.
.
Quando, há cinco anos, o inesperado Oh Me Oh My… revelava uma voz diferente, animada por uma alma ávida da redescoberta de velhos sentidos que pareciam afastados das demandas musicais dos últimos tempos (ou, mais correctamente, dos espaços de grande divulgação), as atenções não levaram muito tempo a centrar-se em volta de Devendra Banhart. Longe de querer ser um líder de uma qualquer nova mensagem, a verdade é que acabou por encarnar um papel de visibilidade protagonista num movimento que deu nova vida (e visibilidade) a velhas heranças da folk e a um evidente prazer pela exploração de certas características “míticas” que pareciam arredadas do discurso musical (apesar da pujança das famílias alt-country desde meados de 90). Colocaram-no sob o rótulo “new weird America”, mas para Devendra Banhart, e toda uma nova geração de folkies (dotados de um estimulante sentido de liberdade formal sem barreiras), os feitos tornaram-se mais importantes que as etiquetas. E houve até quem dele fizesse mais bandeira que o próprio de si mesmo e sua música... Adiante... Há dois anos, Cripple Crow assinalava um passo de saudável ambição formal, ultrapassando o músico os seus primeiros espaços de ensaio que entretanto haviam corrido mundo. Agora, em Smokey Rolls Down Thunder Canyon, leva ainda mais adiante os desafios de contaminação, confirmando em pleno as expectativas de quem em si identificava, ainda a escutar Nino Rojo (2004), que seria uma das figuras de maior relevo da presente década. Se houve quem tivesse descrito Cripple Crow como o seu Blonde On Blonde, há já quem defina o novo disco como o seu White Album (sendo menos apaixonada, portanto mais sóbria, esta segunda comparação que a primeira). De facto nas entranhas de Smokey Rolls Down Thunder Canyon moram tantos caminhos quanto os afluentes de um qualquer vale onde desaguam referências, gostos, desejos. Com convidados como Vashty Bunyan ou Gael Garcia Bernal, com incursões pela música latina, o doo wop, o rock’n’roll, ou paisagens tex mex, este é o álbum em que Devendra Banhart efectivamente sai do armário folk para mostrar como essas são genéticas afinal conjugáveis com todas as demais. Mutante a cada nova faixa, o disco reflecte a saudável ambição de quem não se conforma com a repetição. É o melhor disco de Devendra Banhart até ao momento, e deixa promessas de ainda mais e melhor no futuro...
Devendra Banhart
“Smokey Rolls Down Thunder Canyon”
XL Recordings / Popstock
4/5
Para ouvir: MySpace
.
.
A saída da vocalista Kristin Anna Valtysdottir não significou um ponto final para os Múm. O grupo, que no início da presente década conheceu exposição global, aproveitando focos de atenção sobre a Islândia lançados por Björk, os Gus Gus e Sigur Rós, ganhou visibilidade por uma identidade que projectava um certo sentido de onirismo boreal através de uma música feita de filigranas para electrónicas e canto. Parte da sua personalidade sendo, na verdade, vincada pelas características teatrais da vocalista que, entretanto, trocou a Islândia por Nova Iorque (onde este ano gravou já um álbum com Avey Tare, dos Animal Collective). Com nova formação alargada a sete elementos, os Múm apresentam neste seu quarto álbum um manifesto de vida que traduz um desejo de reinvenção de si mesmos, claros os sinais de busca de novo ponto de partida. De comum com os três discos anteriores mantém-se um ainda claro interesse pelas texturas e por uma linguagem que aceita tanto a presença das electrónicas como a de instrumentos tradicionais. Os Múm de segunda geração são contudo uma banda que parece hoje mais votada à procura da canção que da exploração de finas linhas de melodias e texturas digitais, e com um desejo de conferir à sua música uma carnalidade mais evidente. O álbum revela isso mesmo, o esforço na escrita reflectindo contudo ainda uma irregularidade nos feitos, oscilando o alinhamento entre boas concretizações de ideias e episódios deslaçados, incompletos, desarrumados. A alma folk do grande Norte habita nestas canções, ensopa-as de névoas e brumas que adivinham contacto próximo do muito frio com o muito quente. Contudo, mais que um sucessor de Summer Make Good (de 2004) ou do fulcral Finally We Are No One (de 2002, o tal álbum que incluía o “hino” gelado Green Grass Of Home), este é um disco de renascimento, de redefinição de ideias e objectivos. Os dados estão baralhados, mas o caminho parece sugerido. Esperemos por um próximo álbum para tirar conclusões...
Múm
“Go Go Smear The Poison Ivy”

PIAS / Edel
3/5
Para ouvir: MySpace
.
.
Não é a primeira vez que vemos uma grande promessa identificada com um soberbo álbum de estreia a tropeçar e tropeçar ao segundo disco. É o que está a acontecer com os britânicos Hard Fi, cujo novo álbum em nada satisfaz as altas expectativas de quem aguardava algo bastante diferente para suceder ao muito promissor Stars of CCTV, de 2005. A banda, oriunda de uma pequena cidade a Sul de Londres, chamou justificadas atenções quando o seu álbum de estreia revelou curiosa capacidade de fazer coexistir uma admiração pelo punk e pela música de dança (ou, especificamente, pelos Clash e Daft Punk). Dois anos depois, procuram manter firme uma vontade em fazer das suas canções espaço de debate para questões na ordem do dia, da guerra no médio oriente à emigração ilegal, mesmo que lhes falte o sentido da palavra e da ideia como encontramos em contemporâneos seus como os The Rakes ou The Streets, francamente mais capazes de traduzir na sua música veículos de opinião de rua, portanto distintos da eloquência polida dos opinion makers de televisão. Contudo, não é na palavra que faltam os argumentos aos Hard Fi. Um primeiro olhar para o álbum mostra-os capazes de usar ideias e discurso. “No cover art”, lê-se numa capa (sem capa), evidente provocação ao sistema “tradicional” na era do download, na qual para muitos o conceito de capa de disco deixou de fazer sentido. Contudo, foi na hora de passar das ideias à prática (musical) que o equívoco lhes bateu à porta. Aparentemente desnorteados, ou ofuscados, pelo inesperado sucesso do álbum de estreia, apostaram numa abordagem mais limpa e directa a um rock ocasionalmente dançável, fácil na digestão, com evidente subtexto de sonhos de grandeza nas entrelinhas. Nada contra a ambição, se aplicada com inteligência e sentido de oportunidade. Aqui, contudo, parece mais coisa de oportunismo de pouca dura...
Hard Fi
“Once Upon A Time In The West”
Atlantic / Warner
2/5
Para ouvir: MySpace


Também esta semana:
Edwin Collins, The Grid, Murcof, Simon & Garfunkel (Live 1969). Manu Chao, Turin Brakes, David Bowie (reedição), Dead Or Alive (reedição), Debbie Harry, Broken Social Scene, Fados (banda sonora), Ian Brown, Pet Shop Boys, Scott Walker, Joni Mitchell, Jona Lewie (reedição), Squeeze (reedições), Jose Gonzales, Iron & Wine


Brevemente:
1 de Outubro: Clã, Bob Dylan (best of), Jim White, Felix da Housecat, Babyshambles, Annie Lennox, Bruce Springsteen, Mick Jagger (best of), Lou Rhodes
8 de Outubro: David Fonseca, Beirut, The Cloud Room (ed europeia), Ed Harcourt, Fiery Furnaces, The Hives, Robert Wyatt, Teddy Thompson
15 de Outubro: Efterklang. Lilac Time, REM (ao vivo), Roisin Murphy, Underworld, Undertones

Outubro: Madonna, Junior Boys, Sex Pistols (caixa de singles), Dave Gahan
Novembro: Duran Duran, Sigur Rós (CD + DVD), Sex Pistols (singles), Led Zeppelin (best of)

quarta-feira, setembro 26, 2007

A IMAGEM: Terry Richardson, 2007

Stephanie Seymour (campanha Sisley), 2007

101 razões

Roteiro de referência de grandes cidades de todo o mundo (a começar, obviamente, por Londres), a Time Out também já existe em versão portuguesa: a partir de hoje, a edição de Lisboa propõe-se fornecer informações, sugestões e opiniões sobre o há para ver, ouvir e descobrir — das exposições aos filmes, das lojas aos locais da noite, do teatro aos restaurantes. Na capa do primeiro número escreve-se: "Damos-lhe 101 razões para abrir os olhos e adorar esta cidade". João Cepeda é o director da nova publicação, com João Miguel Tavares a assumir as funções de director-adjunto. A revista sai às quartas-feiras e custa 2 euros.

Notícias do dia (3/3)

Notícias do dia (2/3)

Notícias do dia (1/3)


São lágrimas, senhores...

O segundo teledisco do álbum 23, o mais recente dos Blonde Redhead, ilustra a canção The Dress com uma colecção de retratos de rostos em lágrimas. Realização de Mike Mils. A banda, recorde-se, estará brevemente em Lisboa para assegurar a primeira parte do concerto dos Interpol, no Coliseu dos Recreios.

Achtung... e um terço

O 49º volume da série 33 1/3 é dedicado ao álbum Achtung Baby, que em inícios de 90 assinalou inesperada e aclamada mudança de rumo na obra dos U2. O livro, assinado por Stephen Catanzarite, é o primeiro desta série a exibir um ângulo claramente religioso na sua abordagem ao álbum em questão. O livro está já publicado nos Estados Unidos e deverá chegar brevemente aos mercados europeus. O próximo volume desta série será dedicado ao álbum If You're Feeling Sinister, dos escoceses Belle & Sebastian, ao que deverá seguir, já em 2008, um outro dedicado a Pink Moon, de Nick Drake. A chegar aos escaparates europeus deve estar, entretanto, o volume desta colecção dedicado ao álbum Rid Of Me, de PJ Harvey.

Soft Cell: as remisturas

Apesar de novamente desactivados como banda, os Soft Cell estão a preparar um álbum de remisturas de temas seus. Terá por título Heat - The Remixes e nele colaboram nomes como os de Richard X, Ladytron ou Mark Moore.

terça-feira, setembro 25, 2007

Herbie & Joni

Está a chegar um novo álbum de Joni Mitchell: dá pelo nome de Shine e tem a chancela da editora das lojas Starbucks, Hear Music. Enquanto esperamos, temos uma obra-prima feita a partir das canções de Joni Mitchell, com assinatura de uma das lendas vivas do jazz: Sua Excelência, o Sr. Herbie Hancock. Chama-se River: The Joni Letters e é uma antologia de dez temas revistos, reencenados e reinventados pela arte paradoxal de Herbie Hancock, da austeridade pudica do seu piano à crueza inconfundível da voz de... Tina Turner!
É verdade: Tina Turner é uma das convidadas desta aventura que não podemos deixar de aproximar do magnífico Possibilities (2005), em que Hancock mobilizava, entre outros, Christina Aguilera, Paul Simon e Annie Lennox para uma colecção de delicadas e festivas contaminações entre jazz e pop. River: The Joni Letters vai de Norah Jones a Leonard Cohen — sem dispensar a própria Joni Mitchell —, numa dinâmica criativa que escapa a qualquer rótulo "tradicional", mesmo se é verdade que, da sensibilidade jazzística, conserva sempre o sentido de risco, o gosto do improviso e a obsessão pela estrutura. O alinhamento é este:

* Court and Spark, Norah Jones
* Edith and the Kingpin, Tina Turner
* Both Sides Now [instrumental]
* River, Corinne Bailey Rae
* Sweet Bird [instrumental]
* Tea Leaf Prophecy, Joni Mitchell
* Solitude [instrumental]
* Amelia, Luciana Souza
* Nefertiti [instrumental]
* The Jungle Line, Leonard Cohen [spoken word]

Todos os temas são de autoria de Joni Mitchell, excepto Tea Leaf Prophecy (Joni Mitchell/Larry Klein) e Nefertiti (Wayne Shorter). Os músicos são:

* Herbie Hancock (piano)
* Wayne Shorter (saxofones tenor e soprano)
* Dave Holland (baixo)
* Vinnie Colaiuta (bateria)
* Lionel Loueke (guitarra).

O factor humano

Houve um tempo que o jornalismo "militante" produziu um pouco de tudo, desde a básica e veemente denúncia das injustiças até às mais lamentáveis visões maniqueístas do mundo e das relações entre indivíduos e grupos. Hoje em dia, quando assistimos todos os dias à proliferação de uma "informação" fulanizada, indiferente aos factos e sem paixão pelo factor humano, vale a pena perguntar: ainda há um jornalismo capaz de se reconhecer em causas e valores, sem que isso o enrede nas banalidades e artifícios do "jogo" político? Questão a (re)pensar, por exemplo a partir desta bela primeira página do inglês The Independent, abordando a situação na Birmânia e, mais concretamente, os protestos dos "filhos de Buda".

Orquestra de rua

A canção que está a servir de aperitivo para o novo álbum de Beirut não esconde a descoberta da música francesa pelo seu cérebro criativo. Aqui podemos ver e ouvir Nantes (onde tem evidente protagonismo um acordeão de alma francesa), num concerto de rua (integrado na série online apresentada pela Blogotheque).

Com que vozes?

Antes de rodada a primeira cena, já Fados (que estreia no próximo dia 4), era um filme polémico. Polémico porque uma pequenez provinciana levou alguns a questionar o porquê de ser apoiado um estrangeiro com vontade de filmar o fado. Se nos lembrarmos o que Wim Wenders, um alemão, fez pela música de Cuba em Buena Vista Social Club, o que o mesmo realizador contribuiu para a divulgação internacional dos Madredeus em Viagem a Lisboa ou o que Sally Potter, uma inglesa, deu ao tango em Lição de Tango, estas suspeitas de passaporte ser argumento. De resto, depois de visto o simplesmente deslumbrante Fados, compreenderemos que só mesmo um realizador estrangeiro poderia ter feito semelhante filme. Um filme fundamental para levar o fado mais longe no mundo, no tempo, na sua própria renovação e reinvenção enquanto género vivo e com muito ainda para nos dar.
.
Fados - e o “s” do título ajuda a arrumar ideias – é, sobretudo, uma visão muito pessoal sobre o universo do fado, das suas genéticas e afinidades. É a visão de Carlos Saura, criada depois de conversas, música escutada e vista, com alguns dos maiores conhecedores do género por interlocutores. Uma visão que se manifesta em filme que, mais que documental, é eminentemente um musical. Com uma banda sonora que, mesmo servindo no ecrã imagens elaboradas a pensar nestas músicas, sobrevive agora como disco, mostrando também assim como o fado é lugar onde desaguam histórias, mas também sabe ser afluente de novas realidades.
.
Com sóbria atenção pelas ideias em jogo, Fados tanto mostra uma relação saudável com a memória, como espelha um ser presente que acredita no futuro. Portugal é aqui um porto que recebe navios e outros envia para mais além. De África e do Brasil chegam referências que se assimilam. Para o futuro projectam-se novas leituras de velhas normas, ensaiam-se afinidades nas novas linguagens urbanas (o hip hop está presente), aceita-se o desafio da globalidade sob caução da expressão world music. Tudo isto sem esquecer raízes, a tradição, os ditados canónicos. Como no filme, a banda sonora traduz esta colecção de quadros. África mora evidente em Transparente, de Mariza. E o Brasil revela-se quando Toni Garrido canta Menina Você Tem, Chico Buarque recorda, com a colaboração de Carlos do Carmo, o seu Fado Tropical ou Caetano Veloso dá nova alma a Estranha Forma de Vida. Lila Downs reinventa Foi Na Travessa da Palha sob travo pop. Catarina Moura evoca a Severa, Cuca Roseta encanta na Rua do Capelão. Camané e Carlos do Carmo são, como sempre, magníficos. Com Miguel Poveda, Mariza abre pontes com o flamenco em Meu Fado Meu. Argentina Santos recorda velhas escolas, assim como é espantosa encenação de outra tradição a casa de fados virtual partilhada por Vicente da Câmara, Maria da Nazaré, Ana Sofia Varela, Carminho, Ricardo Ribeiro e Pedro Moutinho. Estes e mais motivos mais não fazer que provar que muitos caminhos o fado tem ainda pela frente. Estes, e os que mais vierem.
PS. Texto originalmente publicado na revista NS

A porta de Fritz Lang

Nome emblemático do expressionismo alemão, Fritz Lang (1890-1976) foi convidado, em 1933, por Joseph Goebbels, para liderar o novo estúdio de produção que estava a ser montado pelo regime nazi — consciente das consequências do facto de possuir ascendência judaica, foi quanto bastou para que Lang saísse da Alemanha, cumprindo uma passagem breve pela França (onde rodou Liliom, em 1934), para depois se afirmar em Hollywood, transformando-se num dos autores de referência do classicismo americano.
Acaba de chegar ao mercado do DVD, precisamente um dos filmes de génio desse período: O Segredo da Porta Fechada (1948), com Joan Bennett e Michael Redgrave, uma espécie de melodrama virado do avesso que reflecte a "moda" das intrigas psicanalíticas (por exemplo, Spellbound/A Casa Encantada, de Alfred Hitchcock, é de 1945), ao mesmo tempo que relança o cepticismo moral de Lang e a sua fria contemplação da obstinação do Mal.
A edição tem um extra precioso a valorizá-la: nada mais nada menos que uma entrevista com o próprio Lang, realizada cerca de um ano antes do seu falecimento — o entrevistador é William Friedkin, na altura um dos nomes mais fortes da produção americana, com dois enormes sucessos consecutivos: The French Connection/Os Incorruptíveis contra a Droga (1971) e O Exorcista (1973).

domingo, setembro 23, 2007

Pop/rock em DVD: uma lista

Pelo menos desde os tempos heróicos dos Beatles filmados por Richard Lester — A Hard Day's Night e Help! são de 1964 e 1965 —, a música pop é indissociável do cinema. Em tempos mais recentes, tudo isso se tornou coisa íntima do DVD. Daí que faça sentido perguntar, não só quais são os clássicos de referência do género, mas também quais se podem organizar numa pequena filmoteca em DVD. A Rolling Stone pôs as perguntas e dá as suas respostas: The Last Waltz (1978), de Martin Scorsese, surge a liderar uma lista de 25 títulos "obrigatórios". Seguem-se Monterey Pop (1968), de D. A. Pennebaker, com uma das mais lendárias performances de Jimmi Hendrix, e A Hard Day's Night. Entre os eleitos incluem-se Woodstock (1970), de Michael Wadleigh, Stop Making Sense (1984), com os Talking Heads filmados por Jonathan Demme, The Filth and the Fury: A Sex Pistols Film (2000), de Julien Temple, e Elvis: '68 Comeback Special (1968), de Steve Binder [foto]. A notícia, no site da Rolling Stone, contém links para pequenos extractos dos filmes.

As "notícias secretas" de Londres

No dia 21, escrevi aqui um primeiro post sobre António Esteves Martins e a sua abordagem gratuita da saída de José Mourinho do Chelsea. Vinte e quatro horas depois, ele voltou ao assunto — e eu também, propondo uma segunda abordagem, agora das suas teorias da conspiração. Pela terceira vez, escrevo a pretexto da sua intervenção, ainda sobre o mesmo assunto, hoje no noticiário das 13h00, na RTP1.
*****
Há aqui um incómodo que não posso deixar de explicitar: de repente, pareço confundir as muitas misérias do jornalismo português com o trabalho individual de António Esteves Martins. Não é assim, e gostaria de o sublinhar: ele é, afinal, apenas uma peça de um entendimento da informação que favorece o gratuito, o especulativo e, no limite, a criação de uma visão "policiesca" do real. Não me custa acreditar que faz o seu trabalho com inteira dedicação e boa fé. Em todo o caso, não creio que o reconhecimento de tudo isso deva impedir a análise — e, sobretudo, a clara recusa — de formas de actuação que continuam, todos os dias, a desautorizar todo o jornalismo que se faz em Portugal.

*****
O tema foi, desta vez, um artigo do jornal The Observer, intitulado 'Terry vira-casacas' — aí se diz que o capitão John Terry terá sido uma peça decisiva nos bastidores da saída de Mourinho, acabando por adoptar uma atitude contrária à fidelidade em relação ao treinador português que, desde sempre, fez questão em explicitar publicamente.
Mais uma vez, é o tratamento da informação que está em causa. Ora, como é que António Esteves Martins dá conta da abordagem de The Observer? Dizendo que, afinal, isto já se sabia há vários dias. Mais do que isso: dizendo que tudo isto era uma "notícia" (sic), mas que era uma notícia "secreta" (re-sic).
COMO? Importa-se de repetir...
Quer isto dizer que António Esteves Martins tinha a notícia e preferiu não a dar? Mais do que isso: quer isto dizer que o conceito de notícia, por definição remetendo para qualquer coisa de público e explícito, passou a ser entendido como coisa eventualmente secreta ou implícita?
Em boa verdade, creio que a questão é mais simples: António Esteves Martins limita-se a funcionar como eco da "voz do povo" e tudo aquilo que ouve (como qualquer um de nós pode ouvir) em "conversa de café" é por ele encarado como espectacular verdade latente que, num futuro mais ou menos próximo, será dramaticamente confirmada. Aliás, na intervenção do dia anterior, ele apresentou mesmo aquilo que era a "reacção" dos portugueses de Londres à saída de Mourinho. Que reacção era essa: três-pessoas-três, num total de uns 60 segundos (se tanto...), a dizer coisas tão banais como qualquer um de nós poderia dizer ao virar de uma esquina qualquer. Os portugueses de Londres???...
Para terminar, António Esteves Martins informou ainda que, depois da saída de The Observer, Peter Kenyon (director executivo do Chelsea) já tinha desmentido as alegações do jornal. Mais ainda: com ironia, sublinhou que isso é "normal". Assim se favorecem dois erros jornalísticos:
— erro informativo: de facto, não faz sentido diminuir ou lançar qualquer tipo de suspeita sobre a reacção de Kenyon apenas porque é "normal" — aos visados por uma qualquer notícia, assiste o direito básico de expressar o seu ponto de vista sobre o respectivo conteúdo;
— erro ético: a descrição de António Esteves Martins faz supor que The Observer publicou a notícia sem ter ouvido Peter Kenyon, o que, além do mais, deixa uma nota negativa sobre a deontologia do jornal — ora, basta ler até ao fim o texto do jornal, para verificar que o desmentido de Kenyon integra a própria notícia.

Televisão & emoção

Texto publicado na revista de televisão do Diário de Notícias (21 Set.), com o título 'Como abordar as emoções' >>> Na última edição de O Eixo do Mal (SIC Notícias), José Júdice avançou com uma expressão cuja precisão vale a pena sublinhar. Discutiam-se as formas de abordagem jornalística do “Caso McCann” e, em particular, a avalancha de coisas gratuitas com que, a pretexto dele, as televisões (portuguesas e estrangeiras) nos têm massacrado. Júdice sugeriu, então, que vivemos numa ditadura da emoção. Assim é, de facto: as emoções são muitas vezes tratadas como inquestionável aval de justeza e, no limite, de justiça. Concretamente, já se viu que há quem não hesite em extrair ilações “científicas” a partir das lágrimas que Kate McCann chora (e, sobretudo, não chora).
Convém, por isso, lembrar: há uma forma ancestral de estupidez sempre disponível para considerar que suspeitar das emoções é coisa de “intelectual”. Ora, importa lembrar algo que, de Sócrates a Sartre, a humanidade muito bem conhece: pensar dá prazer, pensar é uma actividade intrinsecamente emocional. O problema (televisivo, neste caso) não está em escolher entre “razão” e “emoção”. Trata-se, isso sim, de questionar o que se faz com as emoções.
Lembrei-me destas dúvidas a propósito de uma espantosa edição do programa Oprah (SIC Mulher), emitida ao longo desta semana. Oprah Winfrey abordava o caso terrível de uma jovem do estado do Ohio que, aos quinze anos, tentou esconder o facto de estar grávida, acabando por deixar morrer o seu bebé no momento do parto. A história, infinitamente perturbante, era contada pela própria protagonista, actualmente a cumprir uma pena de prisão.
Digamos, para simplificar, que Oprah não abdicava nem por um instante do impacto emocional (e espectacular, no sentido mais genuíno do termo) da sua história. Ao mesmo tempo, fazia-o com exemplar rigor informativo, seguindo uma lógica obstinadamente pedagógica. Foram momentos exemplares de uma maneira de fazer televisão que cumpre dois princípios básicos: primeiro, não especular para além dos factos palpáveis; segundo, nunca esquecer que cada história é sempre pessoal e irredutível.