sexta-feira, junho 13, 2025

Brian Wilson (1942 - 2025)

[Wikipedia]

O legado de Brian Wilson envolve o fulgor e a sofisticação da arte da composição, a imagem de felicidade dos Beach Boys e, arrastando tudo isso, uma filosofia pop que está para lá de qualquer género, já que, sendo musical, é acima de tudo existencial — das suas boas vibrações, eis algumas imagens de Glastonbury, em 2005.
 

>>> Obituário: Pitchfork + Rock & Folk.

quarta-feira, junho 11, 2025

Nashville: 50 anos

Robert Altman

Verdadeiro experimentador, nostálgico e vanguardista, Robert Altman (1925-2006) ocupa um lugar central na história do "New Hollywood" e das suas muitas transfigurações da herança clássica. Na sua filmografia encontramos alguns frescos capazes de combinar as singularidades das personagens com o sentimento de pertença a um colectivo em que se recolhe um povo assombrado pelas contradições da sua própria utopia. Nashville pode servir de exemplo modelar do seu trabalho — estreou-se no dia 11 de junho de 1975, faz hoje 50 anos.

Bono: as canções dos U2... e mais além

Bono como cantor e actor da sua própria história

Redescobrimos Bono como cantor dos U2 e actor da sua própria vida: filmado no palco do Beacon Theatre, em Nova Iorque, Bono: Stories of Surrender (Apple TV+) supera os limites do tradicional “filme-concerto”; a realização é de Andrew Dominik, o cineasta de Blonde — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 maio).

Decididamente, na maior parte das plataformas disponíveis em Portugal, a arte de dar títulos aos filmes não é questão prioritária. O exemplo de Bono: Stories of Surrender aí está para ilustrar a indiferença com que, tantas vezes, o assunto é encarado. Assim, o filme foi lançado na Apple TV+ como Bono: Histórias de Surrender.
“Histórias de Surrender”? Acontece que, em 2022, o vocalista dos U2 lançou uma autobiografia intitulada Surrender: 40 Songs, One Story — a edição portuguesa, também de 2022, com chancela da editora Objectiva, chama-se Surrender: 40 Canções, uma História. Além do mais, as memórias de Bono estão interligadas com a edição, em 2023, de um álbum dos U2, Songs of Surrender, revisitando, precisamente, com novos arranjos, alguns dos seus temas mais emblemáticos.
Dito de outro modo: não é fácil traduzir ou contextualizar o verbo “surrender”. No caso do filme, talvez esta fosse uma das excepções em que, serenamente, mais valia manter (todo) o original, evitando a confusão adoptada. Até porque, de facto, o verbo emerge em várias significações que pontuam o concerto que constitui a matéria viva do filme realizado pelo neo-zelandês Andrew Dominik.
O significado de “render” ou “rendição” (imediatamente evocado por “surrender”) é escasso para dar conta daquilo que está em jogo — e que, importa sublinhar, se revela vital no discurso de Bono ao longo de todo o concerto. Este é mesmo um daqueles casos em que nenhum verbo português parece poder abarcar a pluralidade de sugestões e significações do original. Porquê? Porque a “rendição” de que aqui se fala não se confunde com a entrega a um poder superior. O que Bono descreve, comenta e canta é a sua capacidade de, finalmente, lidar com as convulsões de toda uma vida. Trata-se, primeiro, de reconhecer ilusões e equívocos, desembocando na capacidade de os colocar lado a lado com as alegrias vividas — humildade e aceitação são, assim, os temas aglutinadores destas Stories of Surrender.
A noção corrente de “filme-concerto” é, por isso, insuficiente para dar conta daquilo a que assistimos. São vibrantes e contrastadas as memórias que se cruzam — do nascimento dos U2 até à sua condição de banda “mainstream” (de acordo com o termo que o próprio Bono aplica), passando pelas palavras e, sobretudo, os silêncios da sua difícil relação com o pai. São matérias de uma teatralidade feliz, com o palco do lendário Beacon Theatre, na Broadway (sala inaugurada em 1929), a transfigurar-se em lugar de muitas evocações minimalistas, no limite bastando uma cadeira e um foco de luz. Sem esquecer que tudo isso se intensifica através da poesia primitiva das imagens a preto e branco, assinadas por Erik Messerschmidt (“oscarizado” em 2021 pela direção fotográfica de Mank, de David Fincher).

Andrew Dominik
Andrew Dominik, cineasta

Com a realização de Bono: Stories of Surrender, Andrew Dominik merece que o encaremos para lá da condição de funcionário versátil que, por vezes, tende a resumir o seu trabalho. Lembrando, antes do mais, que na sua filmografia encontramos uma importante ligação com as matérias musicais: são dele os documentários One More Time with Feeling (2016) e This Much I Know to Be True (2022), ambos sobre Nick Cave.
Depois da estreia na longa-metragem, com o policial Chopper (2000), uma produção australiana, Dominik assinou dois títulos capazes de reimaginar as regras clássicas dos respectivos géneros: um western, O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford (2007), e um thriller, Mata-os Suavemente (2012), ambos protagonizados e produzidos por Brad Pitt. Finalmente, o seu retrato trágico de Marilyn Monroe, Blonde (2022), com Ana de Armas, a partir do romance de Joyce Carol Oates (de novo com produção de Brad Pitt), confirmou-o como um invulgar arqueólogo das mitologias do espectáculo.

terça-feira, junho 10, 2025

Alice Sara Ott na NPR

Pianista alemã de ascendência japonesa (nascida em Munique, em 1988), Alice Sara Ott é um caso muito sério de talento, sofisticação e versatilidade. Assim o prova o seu Tiny Desk Concert [NPR], combinando Chopin e... Chilly Gonzalez — a gravação é de julho de 2023.
 

A IMAGEM: Paul Fusco, 1968

PAUL FUSCO / Magnum
Robert Kennedy funeral train
1968

segunda-feira, junho 09, 2025

Psycho Killer, com Saoirse Ronan

A especialíssima reedição de Talking Heads: 77, o álbum de estreia da banda de David Byrne (guitarra, voz), Chris Frantz (bateria), Tina Weymouth (baixo) e Jerry Harrison (guitarra, teclados), possui agora um magnífico complemento: um teledisco de Psycho Killer, lançado como acto de celebração dos 50 anos do primeiro concerto da banda no CBGB. Saoirse Ronan protagoniza e Mike Mills realiza — ou como um clássico se transfigura através de uma nova dialéctica espaço/tempo gerada por uma montagem visceralmente cinematográfica.
 

sábado, junho 07, 2025

Política, margarina e um toque de semiologia

A Casa Encantada (1945): desenhado por Dalí, filmado por Hitchcock

Como pensar a televisão a partir do seu interior? Em boa verdade, a tarefa tornou-se quase impossível — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 maio).

Tempos houve em que, para algumas pessoas, era de bom tom tratar os críticos de cinema como uns rapazes esforçados e arrogantes que se distinguiam por uma ridícula obsessão: tinham a mania de analisar os filmes... Podia até sugerir-se que a complexidade narrativa de um filme de Hitchcock se aproximava da densidade de uma pintura de Dalí (trabalharam juntos, já agora), mas isso era irrelevante — “analisar” os filmes, que disparate...
Confesso que tenho saudades dessas atribulações das décadas fundadoras da nossa democracia, ainda que o fenómeno já existisse antes de 1974, tendo passado, incólume, de um tempo para outro. Era, pelo menos, possível compreender e, de algum modo, valorizar as diferenças com que vivíamos. Agora, entre política e futebol, a “análise” passou a ser um vírus televisivo, para mais ancorado num tique de linguagem que se tornou epidémico: o “analista” comum começa quase sempre com as palavras “eu acho que...” — tal expressão é aplicada como prova de uma verdade inequivocamente estabelecida apenas porque ele ou ela “acha que...”
Vem isto a propósito de um fenómeno paralelo cuja perversidade de linguagem me interessa e, perversamente também, me seduz. Assim, em alguns canais de televisão, têm surgido participantes em debates políticos que vão dando conta da sua indignação face ao automatismo com que qualquer evento em torno do partido Chega é rapidamente transformado em sobressalto “informativo”, mesmo quando (por mim, diria mesmo: sobretudo quando) não há nada de novo ou relevante para ser noticiado.
Roland Barthes
Abre-se, deste modo, uma saudável via de reflexão que, infelizmente, ninguém arrisca prosseguir. A saber: até que ponto a ascensão social de algumas forças políticas (não apenas em Portugal, como é óbvio) tem sido favorecida pela ligeireza com que determinadas linguagens televisivas excluem qualquer hipótese de pensamento, apenas celebrando o que possa conter alguma promessa de agitação ou conflito? Não há muitos anos, numa gritaria à porta de um estádio de futebol, e na expectativa de alguma confusão, um jovem repórter, aparentemente desiludido por não ter à sua frente uma altercação mais extremada, formulou mesmo a frase chave desta ideologia mediática: “Ainda não há violência...” A pergunta que ficou é esta: quem ensinou os jovens como ele a reportar aquilo que “ainda” não aconteceu?
Agora, pelo menos, há quem comente política no interior da televisão chamando a atenção para a grosseria cognitiva que a televisão, precisamente, pode assumir e propalar. Sinto-me próximo das suas preocupações, embora perguntando se têm consciência da ambiguidade do seu gesto. Entenda-se: não se trata de duvidar da sua sinceridade e isenção, do mesmo modo que ninguém está a sugerir que as televisões são cavalos de Tróia deste ou daquele partido. As questões em jogo são menos lineares e francamente mais incómodas. Acontece que esta denúncia televisiva da mediocridade (também) televisiva pode favorecer o perturbante fenómeno semiológico que Roland Barthes, nas suas Mitologias, chamou “vacina da verdade” (foi em 1957!!!).
“Um pouco de um mal reconhecido dispensa o conhecimento de muito mal escondido”, escrevia Barthes (a tradução é minha) a propósito da publicidade da margarina Astra. Eis a vacina da verdade. Primeiro, a margarina é apontada como um verdadeiro escândalo gastronómico: “Uma mousse feita com margarina? Impensável!”. Depois, emerge uma espécie de compaixão religiosa: afinal, “a margarina é um alimento delicioso, agradável, digestivo, económico, útil em qualquer circunstância.” Resume Barthes: ao aceitar a banalidade da margarina, normalizando o seu consumo, “a consciência suaviza-se".
A questão de fundo, creio, decorre de um facto que todos, analistas ou políticos (por vezes, analistas e políticos), continuam a recalcar. A dinâmica social da política — e, em boa verdade, toda a dinâmica social — passou a ser determinada, filtrada, organizada, decomposta e recomposta por linguagens de raiz televisiva. Eis um bom tema para analisar.

Como filmar o sangue das touradas?

Andrés Roca Rey em Tardes de Solidão: o sangue dos outros

No filme Tardes de Solidão, o cineasta espanhol Albert Serra acompanha várias performances do toureiro Andrés Roca Rey. Estamos perante um desafio cinematográfico que merece ser visto e discutido pelos seus méritos e, sobretudo, os seus limites — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 maio).

Quando termina o genérico de Tardes de Solidão, do espanhol Albert Serra, deparamos com um aviso que ajuda a definir os seus méritos e limites. Assim, o retrato do toureiro Andrés Roca Rey seria... um não-retrato. Diz a legenda final: “Todas as imagens deste filme limitam-se a reflectir a celebração pública das touradas.”
Quando um cineasta se envolve com um assunto realmente fracturante — neste caso, as touradas —, não parece sensato supor que é possível rasurar o facto de qualquer narrativa, mesmo de modo inconsciente, produzir algum ponto de vista. Ao definir o filme através da “celebração pública das touradas”, dir-se-ia que Albert Serra nos quer fazer acreditar que um modo de filmar é apenas o resultado daquilo que se filma.
Sejamos pragmáticos — não se trata de lançar uma dúvida moral sobre o projecto. Albert Serra está apenas a tentar proteger-se das confusões polémicas que o seu filme não pode deixar de atrair, já que raras vezes se terá mostrado a prática dos touros de morte de forma tão explícita — tem todo o direito de o fazer, até porque haveria (ou há) razões para, desde logo no contexto espanhol, existir a expectativa de tais confusões.
Sublinhemos, por isso, o paradoxo: se alguma boa alma ainda tinha dúvidas sobre a barbaridade inerente às touradas, a par do simplismo abstracto da sua mitologia, então a avalanche de sangue e o sofrimento atroz dos touros que vemos em Tardes de Solidão bastariam, sem qualquer abstração, para esclarecer tais dúvidas. Estaríamos, talvez, perante uma regra primordial de qualquer tratamento documental. A saber: dar a ver as coisas como elas são. Ora, aqui, mais do que nunca, importa contrariar a retórica gerada por essa regra, lembrando que a relação de uma câmara com um determinado universo nunca é acidental — porque é sempre selectiva.
Que acontece, então, em Tardes de Solidão? Uma espécie de montagem em loop que cola uma matança com outra matança, correndo o risco de se confundir com algumas linguagens televisivas dos nossos dias que tratam as tragédias mais sangrentas (Ucrânia, Gaza, etc.) tentando fazer-nos crer que a delirante repetição de imagens constitui, por si só, um acréscimo de conhecimento.
Ainda assim, não simplifiquemos. A postura altiva de Andrés Roca Rey e, sobretudo, o modo como os seus companheiros celebram as suas proezas ajudam a compreender o esquematismo moral de toda uma ideologia. Ou seja: um touro acossado, a sangrar abundantemente, face a um homem com uma espada letal seria a apoteose de um combate de absoluta igualdade. Como? Falta fazer um filme a partir do ponto de vista, não do toureiro, mas do touro — eis um interessante desafio cinematográfico para voltarmos a avaliar a “celebração pública das touradas”.

sexta-feira, junho 06, 2025

* Eurovisão + Cannes
SOUND + VISION Magazine (FNAC, hoje, 7 junho)

São os dois festivais da nossa Primavera. Ou seja: as canções da Eurovisão + os filmes de Cannes num balanço naturalmente recheado de imagens e sons.

* FNAC Chiado — 7 junho, 17h00.

quinta-feira, junho 05, 2025

Um fotograma de Cannes

À luz das velas, ou o perfeccionismo de Kubrick

Uma memória de Cannes: rever Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick, é reencontrar a vibração sensual das imagens pré-digitais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 maio).

Ao longo deste século, os festivais de cinema têm aberto as suas programações aos filmes clássicos, mais ou menos “antigos”. Não se trata de um banal gesto de nostalgia. Estamos perante um sinal da consciência da memória ou, mais exactamente, da possibilidade de perda da memória. Isto porque, muito para lá do cinema, a definição do presente torna-se tanto mais volátil, eventualmente manipulável, quanto o esquecimento for uma regra dominante na sociedade.
Também neste domínio, o Festival de Cannes continua a ser uma referência modelar. Em boa verdade, podemos mesmo dizer que, em termos proporcionais, a secção Cannes Classics é a que mais cresceu ao longo dos últimos 20 anos. Primeiro, o incremento das cópias restauradas correspondia, sobretudo, à crescente importância do formato Blu-ray, ideal, justamente, para difundir os clássicos que tinham sido tratados para recuperar as qualidades das suas imagens originais; depois, com a consolidação das plataformas digitais, surgiu uma importante via de difusão de novas cópias de títulos marcantes na história do cinema. Os filmes restaurados (de autores tão emblemáticos como Alfred Hitchcock ou Ingmar Bergman) recuperaram mesmo o seu lugar nas rotinas das salas escuras — Portugal é um bom exemplo disso mesmo, sobretudo graças à acção de alguns distribuidores e exibidores do chamado circuito independente.
Em Cannes, este ano, dois filmes ilustraram de forma sugestiva a sedução dos clássicos. Estando ambos a comemorar meio século de existência, nunca deixaram de ocupar um lugar de evidência no imaginário popular da cinefilia. São eles Voando sobre um Ninho de Cucos, parábola política sobre as diferenças individuais realizada por Milos Forman, e Barry Lyndon, epopeia social e política alheia às convenções da “reconstituição histórica” com que Stanley Kubrick, inspirando-se no romance de William Makepeace Thackeray (1811-1863), nos “obrigou” a rever a visão meramente decorativa, porventura pitoresca, do século XVIII britânico.
Se evocarmos um fotograma, apenas um, das cenas de Barry Lyndon iluminadas a velas podemos redescobrir, compreender e reavaliar um desafio que, literalmente, ficou para a história. Assim, o lendário perfeccionismo de Kubrick levou-o a colocar uma exigência radical ao seu director de fotografia, John Alcott (que, em 1972, já assinara as imagens de Laranja Mecânica): as cenas de interiores, nomeadamente nos salões da aristocracia, deveriam ser iluminadas apenas pelas velas que, obviamente, na época, eram a única fonte de luz...
O cumprimento do desafio foi quase total (por vezes, Alcott recorreu a discretas iluminações gerais e alguns reflectores). De tal modo que, para ser possível gerar uma imagem que desse a ver o efeito da luz das velas, em particular nos rostos dos actores, Kubrick conseguiu convencer a NASA a emprestar-lhe as lentes que a Zeiss desenvolvera para uso dos astronautas americanos na superfície lunar. Daí que faça sentido, por razões de uma só vez técnicas e românticas, celebrar a singularidade de tal proeza num filme de 1975. Dito de outro modo: estamos ainda longe das imagens digitais, já que Barry Lyndon é um produto clássico de registo em película (que, convém não esquecer, o cinema está longe de ter abandonado).
Neste como noutros domínios da expressão artística, não creio que faça sentido demonizar o digital — é, ou pode ser, um instrumento de trabalho tão útil como qualquer outro. Além de que, não simplifiquemos, podemos citar múltiplos exemplos das suas potencialidades, a começar por A Arca Russa (2002), de Alexander Sokurov. Lembremos apenas que o grão das imagens de Barry Lyndon envolve uma vibração que começa na sensualidade dos detalhes, como se a imagem projectada no ecrã fosse uma “coisa” que pudéssemos tactear. Os mais cínicos dirão que o espectador comum ignora e é indiferente a tudo isso. Talvez sim, mas não consta que esse espectador (que quer dizer “comum”?) seja detentor de uma razão universal. Até porque, se for essa a sua perspectiva, não sabe o que está a perder.