terça-feira, julho 15, 2025

Andy Kaufman
— a gloriosa solidão do cómico

Andy Kaufman: entre comédia e tragédia

Figura singular da história da televisão dos EUA, Andy Kaufman (1949-1984) deixou uma herança complexa que importa conhecer: é essa a proposta do documentário A Comédia e o Caos: o Legado de Andy Kaufman, disponível na plataforma Filmin — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 julho).

De que falamos quando falamos de Andy Kaufman? De uma das figuras mais inclassificáveis da história da televisão dos EUA. Provavelmente, para a maioria dos espectadores europeus, ele será, sobretudo, a excêntrica personagem recriada por Jim Carrey, numa interpretação de puro génio, no filme Man on the Moon/Homem na Lua (1999), por certo um dos objectos mais radicais e complexos da filmografia de Milos Forman. Agora, podemos descobrir um sugestivo documentário capaz de enriquecer o nosso (des)conhecimento — chama-se A Comédia e o Caos: o Legado de Andy Kaufman, tem assinatura de Alex Braverman, e está disponível na plataforma Filmin.
A vida de Kaufman foi tão breve quanto atribulada. Nascido em Nova Iorque, a 17 de janeiro de 1949, faleceu com apenas 35 anos, em Los Angeles, a 16 de maio de 1984, vítima de cancro no pulmão (não fumava, tendo sido provavelmente afectado pelas ambiências dos clubes noturnos em que trabalhou). As suas raízes artísticas são indissociáveis do universo americano da “stand-up comedy” (por alguma razão a expressão “stand-up” adquiriu valor universal no mundo da comédia), tendo começado a trabalhar em clubes especializados no começo da década de 70.
Foi a televisão que o transformou numa estrela nacional, a começar pelo lendário programa da NBC, Saturday Night Live, actualmente a celebrar 50 anos de existência. Kaufman apareceu mesmo no primeiro episódio, emitido a 11 de outubro de 1975, num segmento de insólito humor (evocado no documentário): surgia como uma figura hierática, vestida de modo convencional, embora “desordenado” (casaco apertado, de aspecto muito usado, lenço preto à volta do pescoço), tendo a seu lado um gira-discos — colocava um disco a rodar e, imóvel, escutava o tema do Rato Mickey, fazendo playback com alguns dos seus versos...


O documentário expõe de modo pormenorizado a ascensão de Kaufman, contando com preciosos materiais de arquivo (muitos deles inéditos, descobertos pelo próprio realizador). As evocações vão sendo pontuadas por depoimentos de profissionais que com ele lidaram, do argumentista e produtor Bob Zmuda até actores como Danny DeVito, Marilu Henner e Steve Martin.
Depois do Saturday Night Live, a série Taxi (uma sitcom produzida entre 1978 e 1983) consagrou Kaufman como símbolo de um humor surreal, delicado e ternurento — nos seus sketches, despedia-se com um agradecimento sincopado, “Thank you very much”, expressão que serve de título original ao documentário. A pouco e pouco, essa imagem ligeira foi sendo contaminada por “desvios” nem sempre bem acolhidos pelas audiências, incluindo uma espécie de “alter-ego” agressivo, Tony Clifton, personagem que Kaufman trabalhou como uma caricatura do modelo clássico do cantor de cabaret.
As suas provocações tornaram-se cada vez mais cruas (incluindo os combates de “wrestling”... contra mulheres), criando uma aura de estranheza e inquietação capaz de suscitar movimentos contraditórios de amor e ódio por parte dos espectadores. No limite mais bizarro, houve mesmo quem admitisse que a notícia da morte de Kaufman seria um truque para gerar mais controvérsia...

Verdade e mentira

Sem cair em maniqueísmos moralistas, a realização de Braverman consegue, num tom simples e pedagógico, estabelecer alguns laços entre as singularidades do universo cómico de Kaufman e as componentes mais cruéis, por vezes trágicas, da sua vida familiar — especialmente tocante é o depoimento do pai de Kaufman, recordando o facto de terem escondido a morte do avô (dizendo-lhe que ele andava “em viagem”) e os efeitos dessa mentira no seu dia a dia.
Talvez possamos dizer que Andy Kaufman foi, afinal, um cómico cujo efeito nos outros se enraizava no radicalismo da sua própria solidão. Como se a sua glória nascesse de um gélido bloqueio comunicacional — redescobrir o seu génio é também reconhecer essa contradição visceral.

domingo, julho 13, 2025

Musicais: clássicos & modernos
* SOUND + VISION Magazine / FNAC [19 julho]

O musical teve a sua idade de ouro há mais de meio século, mas não desapareceu: propomos uma revisitação de memórias de um dos géneros mais populares na história do cinema.

* FNAC_Chiado — 19 julho, 17h00.

sábado, julho 12, 2025

Guitarra & Voz [1/10]

Lucky Now

Canção da autoria do próprio Ryan Adams, integra o álbum Ashes & Fire (2011), numa versão que conta com Norah Jones no piano. Esta interpretação foi registada em 2011, no Late Show with David Letterman.
 

Isto não é futebol [Wimbledon]

The V&A

Eis uma verdade rudimentar: em vez da lógica de conflito que domina a vida do futebol, quase sempre através da sua apropriação televisiva, é possível celebrar a racionalidade, e também as muitas emoções, do confronto — sobretudo porque do outro lado também está um adversário humano.
Exemplo? O balanço da final feminina do Torneio de Ténis de Wimbledon, com a polaca Iga Swiatek a vencer a americana Amanda Anisimova por 6-0, 6-0 (resultado que só tinha acontecido uma vez na história de Wimbledon, quando Dorothea Lambert Chambers bateu Dora Boothby, ambas britânicas, em 1911).
As palavras finais de Anisimova e Swiatek aí estão para dar conta da diferença interior deste universo de genuína competição — em baixo, o match point que deu a vitória a Swiatek.
 




Ryan Adams, Come pick me up

Reedição de Come Pick Me Up, canção do álbum Heartbreaker (2000), agora em formato de single digital (e com óculos na capa) — eis a depuração trovadoresca de Ryan Adams, intemporal.

(...)
Come pick me up
Take me out
Fuck me up
Steal my records
Screw all my friends
Behind my back
With a smile on your face
And then do it again
I wish you would
(...)

sexta-feira, julho 11, 2025

Wimbledon — uma celebração

Podia parecer um teledisco dos OK Go... Mas não, este é o video de apresentação do Torneio de Ténis de Wimbledon — um maquinismo de celebração das maravilhas de um desporto em que, para lá de todos os desvios que os mais cínicos possam mencionar, prevalece uma cultura de respeito pelos adversários e celebração do espectáculo que outros eventos ditos populares nem sempre têm para nos oferecer — uma delícia (à espera do confronto Sinner/Alcaraz).
 

quinta-feira, julho 10, 2025

Dinossauros em crise de identidade

Scarlett Johansson à procura de dinossauros...

A saga iniciada com Parque Jurássico (1993), de Steven Spielberg, continua a tentar sobreviver no mercado global. Agora, Mundo Jurássico: Renascimento limita-se a confirmar que faltam ideias, mesmo com Scarlett Johansson no elenco — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 julho).

De acordo com a gíria cinematográfica, é hábito dizer-se que, nas séries temáticas (“franchises”, para usarmos o termo imposto pela globalização), o segundo título é sempre pior que o primeiro. Enfim, pensamos de imediato em O Padrinho – Parte II (1974) e perguntamos se as coisas serão assim tão óbvias, até porque podemos discutir se a saga de Francis Ford Coppola encaixa na noção corrente de “franchise”. Uma coisa é certa: com Mundo Jurássico: Renascimento, realizado por Gareth Edwards, a partir de hoje nas salas de todo o mundo, chegamos ao sétimo título da série iniciada, em 1993, com o magnífico Parque Jurássico, de Steven Spielberg...
Convenhamos que os traumas do segundo filme da “franchise” foram há muito ultrapassados — até porque, neste caso, essa primeira sequela, O Mundo Perdido (1997), também com assinatura de Spielberg, era tão boa ou melhor que o capítulo inaugural. Na prática, os produtores já não sabem muito bem o que fazer para manter viva a mitologia cinematográfica dos dinossauros... Talvez por isso, alguém se lembrou de convidar David Koepp, argumentista dos dois títulos de Spielberg, com o seu nome ligado também, por exemplo, a diversos momentos da filmografia de Steven Soderbergh (incluindo o mais recente Black Bag).
Da aventura anterior, Mundo Jurássico: Domínio (2022), dirigida por Colin Trevorrow, provém a ideia (?) segundo a qual os dinossauros & afins estão a ser geneticamente manipulados para nascerem novos seres monstruosos... Seja como for, e ainda segundo a gíria, este é um filme que, embora integrando pressupostos temáticos do universo de Parque Jurássico/Mundo Jurássico, funciona como uma aventura isolada (“standalone film”). Ainda com uma outra diferença cujos efeitos práticos são banalmente “decorativos”: a heroína feminina deixou de ser Bryce Dallas Howard, cedendo o lugar a Scarlett Johansson, em mais uma escolha francamente infeliz (depois da comédia romântica Leva-me para a Lua, em 2024, que também produziu).
Enfim, desta vez o grupo de exploradores procura recolher algumas amostras de sangue dos animais, transfigurados de modo a parecerem saídos de uma versão grosseira de Godzilla (Gareth Edwards tem uma no seu historial...). De modo involuntariamente caricato, estamos muitos longe, quer dos filmes de Spielberg, quer do romance original de Michael Crichton... Em jogo está a possibilidade de fabricar um medicamento milagroso capaz de curar metade da humanidade e encher os cofres das farmacêuticas. Não desesperemos: há sempre uma boa alma que arrisca questionar o mercantilismo do negócio, o que, há que reconhecer, fica bem nas campanhas publicitárias e nas recomendações dos “influencers”...

domingo, julho 06, 2025

Asmik Grigorian + Strauss (Richard)

[ YouTube ]

Será aquilo que podemos chamar "obra-testamento", mesmo que a designação seja apenas um efeito dramático da biografia do autor: as Quatro Últimas Canções, de Richard Strauss (1864-1949), compostas em 1948, constituem um desafio sempre renovado a qualquer soprano — e tanto mais quanto a sua energia terminal se confunde, dir-se-ia serenamente, com a aceitação da morte.
Com chancela da editora Alpha, a lituana Asmik Grigorian apresenta agora a sua prodigiosa versão, transfigurando a tristeza das canções em pura contemplação espiritual. Aliás, versões, plural, já que se trata de revisitar a obra-prima de Strauss no arranjo canónico com orquestra e também na versão para piano.
Eis um breve video de apresentação do novo álbum e, em baixo, uma performance de 2023, em que Asmik Grigorian é acompanhada pela orquestra da Accademia Nazionale di Santa Cecilia, conduzida por Antonio Pappano — a gravação, feita em Roma, data de 14 de abril de 2023.



A Vida Luminosa
— como inventar uma vida que seja sua?

Francisco Melo à descoberta da cidade

Como é que o cinema português encara o nosso quotidiano e, em particular, as vidas de uma juventude algo à deriva? O novo filme de João Rosas, A Vida Luminosa, procura respostas, retomando temas e personagens das suas curtas-metragens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 junho).

Nas décadas de 1960/70, os autores do Cinema Novo português empenharam-se na abordagem de temas e personagens do nosso país. Em todo o caso, a sua herança foi-se fragilizando: a passagem dos anos instalou mesmo a sensação de que a produção portuguesa, sobretudo quando comparada com as de outros países europeus, é deficitária na relação com o quotidiano das nossas vidas — convenhamos que tal observação tem algum fundamento. Nascido em Lisboa, em 1981, João Rosas é um dos realizadores que tem tentado contrariar essa tendência, atitude agora bem patente na sua primeira longa-metragem de ficção, A Vida Luminosa.
Aliás, importa lembrar que este é um filme que surge como uma “conclusão” de algumas curtas-metragens — Entrecampos (2013), Maria do Mar (2015) e Catavento (2020) — também centradas nas relações de grupos de personagens jovens e, mais do que isso, no trabalho de uma pequena “tribo” de actores. Há mesmo uma figura que se destaca, Nicolau, sempre interpretado por Francisco Melo, agora no centro de A Vida Luminosa.
A existência de Nicolau, lisboeta de 24 anos de idade, evolui através de um conjunto de elementos que, por si só, definem um quadro sociológico e uma deriva afectiva. A vida na casa dos pais envolve um misto de proteção e solidão, já que Nicolau arrasta o peso de uma vocação musical sempre adiada, a par da tristeza de uma relação amorosa que se desvaneceu...
Na sinopse oficial do filme, há uma frase que, de modo simples e sugestivo, resume a sua condição: “Nicolau sente-se incapaz de andar para a frente e inventar uma vida que seja sua.” O comportamento de Nicolau acaba por contrariar essa possibilidade de “andar para a frente”. O filme assume-se mesmo como a crónica de um tempo luminoso (o título tem tanto de descrição objectiva como de mágoa utópica) que o protagonista habita num permanente ziguezague de actos dispersos e desejos vagos. Quando o vemos a deambular na sua bicicleta ou a aceitar, relutante, um beijo de uma noite sem destino, tudo acontece como se a tal “invenção” da sua vida se apresentasse como uma tarefa imensa que ele próprio não sabe, ou não consegue, contaminar com algum realismo.
O que, enfim, nos ajuda a compreender a aposta formal do próprio filme face à errância desta juventude. Dir-se-ia que a tal relação com o quotidiano se enraíza numa ambivalência capaz de definir, porventura consolidar, um programa estético muito próprio: a instabilidade (de gestos, emoções e ideias) de Nicolau é resgatada pela exigência de um realismo que não desdenhe a possibilidade de uma poesia contaminada por alguma ironia. Como é óbvio, a vida de Nicolau pode ser continuada através de mais filmes.