Estamos de volta à FNAC, assinalando o 40º aniversário de Born in the USA, revisitando a herança de um álbum que marcou de forma decisiva a carreira de Bruce Springsteen — e ficou como uma referência lendária na história da música rock.
>>> Vou votar por Kamala Harris e Tim Walz na Eleição Presidencial de 2024. Vou votar por @kamalaharrisporque ela luta pelos direitos e causas que acredito necessitarem de uma figura guerreira para as defender. Penso que ela é uma líder dotada e com mão firme, e acredito que podemos fazer muito mais neste país se formos conduzidos pela calma e não o caos.
Os milagres não são assunto corrente do YouTube... mas acontecem. Eis um deles, ocorrido a 7 de fevereiro de 2024: The Kills estiveram na rádio KEXP, de Seattle. Apresentados por Cheryl Waters, Alison Mosshart e Jamie Hince interpretaram quatro canções, três do mais recente God Games (2023) e uma de Blood Pressures (2011), terminando com alguns breves minutos de uma conversa de maravilhosa intimidade — beauty exists.
Eis uma curiosa, e muito pedagógica, descoberta de Rick Beato: o roubo descarado de notas de uma canção para outra canção passou a ser tratado pela designação chique de "interpolação". Ou como ele pergunta: "Isto não é apenas roubo?" — vale a pena ver, ouvir e reflectir sobre o assunto.
Com The Kills quase a chegar ao festival Kalorama, recordemos seis das suas canções, cada uma delas de um dos álbuns de originais que já editaram.
Depois de um interregno de sete anos (Ash & Ice era de 2016), God Games surgiu em 2023 com o propósito declarado de desafiar as formas "tradicionais" de The Kills, em particular através da programação, mais do que das guitarras. Ora, como Jamie Hince rapidamente reconheceu, ele e Alison Mosshart permaneciam "apenas" fiéis a si próprios, mesmo com novas e arrojadas "orquestrações". Sem desculpas, reafirmando a glória clássica do rock — eis Wasterpiece.
Head Hunters, álbum seminal de Herbie Hancock, fez 50 anos — foi lançado a 26 de outubro de 1973. No passado dia 14 de agosto, a efeméride teve a sua comemoração oficial, no Hollywood Bowl, com Hancock reunindo os sobreviventes da gravação original: Bill Summers (percussão), Harvey Mason (bateria) e Bennie Maupin (instrumentos de sopro), com Marcus Miller (baixo) no lugar do falecido Paul Jackson. Para lá de todas as fusões — jazz + funk + rock —, eis uma música realmente intemporal. Exemplo: Chameleon.
Cravos e Clematites num Vaso de Cristal (c. 1882), de Édouard Manet
Será que ainda somos capazes de olhar com olhos de ver para um quadro de Manet? Não é certo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 agosto).
Como e quando aconteceu a desvalorização da beleza? Observe-se a avalanche quotidiana de imagens — da Reality TV aos concertos da chamada música pimba — e o modo como a sua sistemática difusão promove e, mais do que isso, procura naturalizar muitas formas de fealdade. O simples reconhecimento de tal estado de coisas é, ou poderia ser, um vector central de qualquer política cultural. E afigura-se tanto mais significativo quanto importa contornar, ou melhor, superar o infantilismo reinante de muitos discursos sobre o belo.
Dito de outro modo: trata-se de fugir do espectro de ideias imposto pelo poder audiovisual da cultura tablóide — fortemente sustentada e alimentada pela normalização do Big Brother televisivo, iniciada há mais de 20 anos — e, pelo menos, reconhecer que a identificação do belo (ou a sua rejeição) existe no coração de qualquer dinâmica cultural.
Importa revalorizar a utilização da palavra “beleza”. Não é fácil, muito menos simples, contribuir para qualquer clarificação do problema, quanto mais não seja porque, da imprensa mais medíocre até ao uso populista dos admiráveis poderes televisivos, assistimos todos os dias ao triunfo de um conceito de beleza ocupado (como se fosse uma ocupação militar) pela vacuidade intelectual e a depressão existencial de “influencers”, vedetas da auto-ajuda, sacerdotes do bem estar universal, etc.
Evitemos, por isso, a vulgaridade estética e os seus agentes. Não se trata de discutir a beleza da pessoa A ou B, eventualmente a comparação da sua beleza com X ou Y. A fulanização da beleza constitui, aliás, o complemento tosco de um pensamento que não ultrapassa as banalidades correntes do marketing e reduz o mundo a mecanismos de “personalização” — há mesmo quem nos queira convencer que, da escolha do mais recente creme depilatório até à descoberta íntima de Deus, tudo é “personalizado” e passível de ser tratado com receitas mágicas herdades de mezinhas medievais.
O desafio que a conjuntura nos coloca é bem diferente — e é, sobretudo, de outra dimensão. O que está em jogo não é a beleza desta ou daquela pessoa, deste ou daquele objecto: é, isso sim, o modo como olhamos o mundo à nossa volta. Ou ainda: a capacidade que temos (ou, definitivamente, perdemos) de construir laços criativos, inteligentes e contagiantes entre o que nos é dado ver e, se possível, a partilha daquilo que vemos com os outros. Nesta perspectiva, a beleza pode ser uma questão de imagens, mas é também, talvez seja mesmo sobretudo, o aparato de circuitos, valores e pensamentos com que reconhecemos que habitamos um espaço comum.
Contemplo os Cravos e Clematites num Vaso de Cristal (c. 1882) pintados por Édouard Manet. Resisto à solução pueril de dizer que o pintor soube reproduzir a vida contagiante de algumas flores tão “bonitas”… Na verdade, a mais básica disciplina do olhar recorda-me que as mesmas flores representadas por um pintor medíocre não passariam de um acontecimento banal, incapaz de mobilizar a minha atenção.
Nada a ver com um saber “superior” enraizado no reconhecimento prévio de Manet como personalidade incontornável na história da pintura. Entenda-se: o que está em jogo não é a confirmação da informação contida na ficha da Wikipedia dedicada a Manet (muito útil, reconheço), mas sim a percepção de que o quadro que contemplamos nasce de algo radical e insubstituível. A saber: uma relação. Talvez duas: primeiro, a do pintor com “aquilo” que decidiu partilhar connosco; depois, a do olhar de cada um de nós com o olhar do pintor.
Por que não expor este quadro numa emissão de televisão? Por que não mostrá-lo em silêncio, 60 segundos apenas, para ser visto no nosso ecrã caseiro?
São perguntas de um lirismo selvagem. Perante o estado das coisas constituem, pelo menos, uma arma legítima de reflexão. Afinal de contas, se se gastam horas, dias, semanas a perorar sobre as crises psicológicas que têm pontuado a carreira de João Félix (a quem manifesto a minha solidariedade), será assim tão escandaloso supor que talvez seja salutar não nos esquecermos de Manet? Não tenho a pretensão se supor que sei exactamente o que temos a ganhar, mas observo com tristeza o que vamos perdendo.
>>> Documentário de Jacques Vichet sobre Édouard Manet (2015).
Com The Kills quase a chegar ao festival Kalorama, recordemos seis das suas canções, cada uma delas de um dos álbuns de originais que já editaram.
Ash & Ice (2016) é um álbum de continuação e reforço das sonoridades do anterior Blood Pressures, talvez mesmo de algumas "sobras", porventura com a diferença de os telediscos reflectirem uma produção de maiores recursos. Porventura significativo é também o facto de, pelo meio, Jamie Hince e Alison Mosshart terem editado um álbum ao vivo (Live at Third Man Records, 2013). Exemplo a considerar: Impossible Tracks.
Holly Hunter e William Hurt em Broadcast News (1987): onde está a verdade?
Que acontece quando a luta política é uma questão de ecrãs? Afinal de contas, é nesse mundo que estamos a viver — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 agosto).
Revisito as memórias de um dos filmes mais brilhantes que já se fizeram sobre televisão: Broadcast News, uma produção de 1987 com argumento e realização de James L. Brooks (entre nós estreado como Edição Especial). Aliás, corrijo a generalização: o espaço televisivo apresenta-se de tal modo fragmentado, habitado por inconciliáveis maravilhas e horrores, que não faz sentido tratar a televisão como “um” tema — é preciso descortinar e, de algum modo, confrontar as muitas diferenças que o habitam.
Lembrei-me de Broadcast News porque nele ecoa uma questão que, por vias bem diferentes, assombra muitos dos actuais protagonistas do pequeno ecrã, dos jornalistas mais sérios aos concorrentes do Big Brother. A saber: o que é a verdade? E como dizê-la? Ou mostrá-la?
A certa altura, no filme, uma produtora de um canal de informação (Holly Hunter) interroga-se sobre a entrevista feita pelo jornalista-vedeta da sua estação (William Hurt) a uma mulher que foi vítima de violação. Observando a totalidade do material registado para a entrevista, percebe que o grande plano do rosto do jornalista a chorar perante o testemunho da mulher não pertence à entrevista — foi forjado a posteriori.
A moral da história projecta-nos num terreno incómodo: a dicotomia verdade/mentira não esgota tudo o que está em jogo. Não se trata apenas de discutir as virtudes de reprodução (ou os artifícios de encenação) que marcam o dia a dia do pequeno ecrã: o sistema de linguagens de que se faz a televisão, ainda que vendido como “reprodução” do mundo, pode funcionar, de facto, como imposição de uma determinada concepção desse mesmo mundo.
Apesar da sua fina sensibilidade crítica, o filme de James L. Brooks está ainda ligado a uma visão liberal inerente à história clássica de Hollywood, anterior à vertigem de ecrãs em que hoje vivemos. Afinal de contas, movendo-se com arrogante à vontade no interior dessa vertigem, Donald Trump dinamitou a questão da produção da verdade, todos os dias celebrando as apoteoses das mais risonhas ficções — agora, alguns jornais dos EUA (aconteceu há dias no New York Times) relatam mesmo cada comício de Trump contrapondo uma lista didáctica das mentiras por ele propagadas.
Como é que Kamala Harris aparece nesta cenografia de infinitos fragmentos narrativos e, mais do que isso, de incessantes “mensagens” para serem vistas nos ecrãs que povoam o nosso mundo? Eis a difícil conjuntura: deixámos de ter ecrãs que “reproduzam” esse mundo, passámos a viver (nem sempre muito felizes, é verdade) num mundo feito de ecrãs.
As pessoas e entidades que apoiam Kamala Harris compreenderam que Trump há muito investira no fogo fátuo desse mundo de imagens, sendo necessário (politicamente necessário, entenda-se) arriscar no interior das suas coordenadas, sinalizando algumas fundamentais diferenças. Resta saber de que modo, ou até que ponto, o que está a acontecer irá contribuir para a reposição da nobreza do debate político ou, apesar de todas as boas vontades democráticas, poderá reforçar a nossa condição de reféns dos delírios imateriais dos ecrãs que nos consomem.
Quase quatro décadas depois de Broadcast News, Philippe Sollers dava conta da perversa evolução de todo esse aparato informativo no romance La Deuxième Vie (edição póstuma: Gallimard, março 2024). Sou eu que traduzo: “No oceano dos computadores, a televisão brilha como uma igreja flutuante. Cada vez mais planetária, ela tece a rede de um governo mundial. A estupidez vive sobre-informada através da sua ignorância. Vagas de filósofos auto-proclamados lucram com isso e peroram, a horas fixas, sobre todos os assuntos.”
Não é, por isso, ficção científica reconhecer que toda a dinâmica comunicacional das próximas eleições americanas ecoará de forma muito concreta nas práticas audiovisuais e políticas de ambos os lados do Atlântico. Que vão fazer os sacerdotes da informação e os actores da cena política que, mesmo sem nada para dizer, vivem de “aparecer” nos ecrãs? Serão capazes de desistir da preguiça da rotina, escolhendo os sobressaltos da inteligência?
Com The Kills quase a chegar ao festival Kalorama, recordemos seis das suas canções, cada uma delas de um dos álbuns de originais que já editaram.
Se é que faz sentido falar de "evolução" a propósito de artistas tão metódicos e obessivos como Jamie Hince e Alison Mosshart, então Blood Pressures (2011) é o álbum da conquista definitiva da maturidade. Canções como Future Starts Slow, Heart Is a Beating Drum ou Baby Says são objectos de admirável depuração e primitivismo — ou ainda, a preto e branco, The Last Goodbye.