Figura singular da história da televisão dos EUA, Andy Kaufman (1949-1984) deixou uma herança complexa que importa conhecer: é essa a proposta do documentário A Comédia e o Caos: o Legado de Andy Kaufman, disponível na plataforma Filmin — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 julho).
De que falamos quando falamos de Andy Kaufman? De uma das figuras mais inclassificáveis da história da televisão dos EUA. Provavelmente, para a maioria dos espectadores europeus, ele será, sobretudo, a excêntrica personagem recriada por Jim Carrey, numa interpretação de puro génio, no filme Man on the Moon/Homem na Lua (1999), por certo um dos objectos mais radicais e complexos da filmografia de Milos Forman. Agora, podemos descobrir um sugestivo documentário capaz de enriquecer o nosso (des)conhecimento — chama-se A Comédia e o Caos: o Legado de Andy Kaufman, tem assinatura de Alex Braverman, e está disponível na plataforma Filmin.
A vida de Kaufman foi tão breve quanto atribulada. Nascido em Nova Iorque, a 17 de janeiro de 1949, faleceu com apenas 35 anos, em Los Angeles, a 16 de maio de 1984, vítima de cancro no pulmão (não fumava, tendo sido provavelmente afectado pelas ambiências dos clubes noturnos em que trabalhou). As suas raízes artísticas são indissociáveis do universo americano da “stand-up comedy” (por alguma razão a expressão “stand-up” adquiriu valor universal no mundo da comédia), tendo começado a trabalhar em clubes especializados no começo da década de 70.
Foi a televisão que o transformou numa estrela nacional, a começar pelo lendário programa da NBC, Saturday Night Live, actualmente a celebrar 50 anos de existência. Kaufman apareceu mesmo no primeiro episódio, emitido a 11 de outubro de 1975, num segmento de insólito humor (evocado no documentário): surgia como uma figura hierática, vestida de modo convencional, embora “desordenado” (casaco apertado, de aspecto muito usado, lenço preto à volta do pescoço), tendo a seu lado um gira-discos — colocava um disco a rodar e, imóvel, escutava o tema do Rato Mickey, fazendo playback com alguns dos seus versos...
O documentário expõe de modo pormenorizado a ascensão de Kaufman, contando com preciosos materiais de arquivo (muitos deles inéditos, descobertos pelo próprio realizador). As evocações vão sendo pontuadas por depoimentos de profissionais que com ele lidaram, do argumentista e produtor Bob Zmuda até actores como Danny DeVito, Marilu Henner e Steve Martin.
Depois do Saturday Night Live, a série Taxi (uma sitcom produzida entre 1978 e 1983) consagrou Kaufman como símbolo de um humor surreal, delicado e ternurento — nos seus sketches, despedia-se com um agradecimento sincopado, “Thank you very much”, expressão que serve de título original ao documentário. A pouco e pouco, essa imagem ligeira foi sendo contaminada por “desvios” nem sempre bem acolhidos pelas audiências, incluindo uma espécie de “alter-ego” agressivo, Tony Clifton, personagem que Kaufman trabalhou como uma caricatura do modelo clássico do cantor de cabaret.
As suas provocações tornaram-se cada vez mais cruas (incluindo os combates de “wrestling”... contra mulheres), criando uma aura de estranheza e inquietação capaz de suscitar movimentos contraditórios de amor e ódio por parte dos espectadores. No limite mais bizarro, houve mesmo quem admitisse que a notícia da morte de Kaufman seria um truque para gerar mais controvérsia...
Sem cair em maniqueísmos moralistas, a realização de Braverman consegue, num tom simples e pedagógico, estabelecer alguns laços entre as singularidades do universo cómico de Kaufman e as componentes mais cruéis, por vezes trágicas, da sua vida familiar — especialmente tocante é o depoimento do pai de Kaufman, recordando o facto de terem escondido a morte do avô (dizendo-lhe que ele andava “em viagem”) e os efeitos dessa mentira no seu dia a dia.
Talvez possamos dizer que Andy Kaufman foi, afinal, um cómico cujo efeito nos outros se enraizava no radicalismo da sua própria solidão. Como se a sua glória nascesse de um gélido bloqueio comunicacional — redescobrir o seu génio é também reconhecer essa contradição visceral.